Os 20 melhores filmes dos anos 1970  (+ 120 grandes longas da década)*

Por Fernando Oriente

Aqui está a lista com meus 20 filmes de longa-metragem favoritos da década de 1970. Pessoalmente acho os anos 1970 o melhor período do cinema mundial, seguido de muito perto pelas décadas de 1960 e 80. Um período de 30 anos que, para mim, conta com o maior número de obras-primas, grandes filmes e grandes cineastas. Por isso, essa relação dos 1970 é acrescida de 60  filmes que poderiam estar entre os 20 primeiros e por mais 60 menções de longas que acho excepcionais. Mesmo com 140 títulos relacionados, vários ótimos filmes e cineastas acabaram ficando de fora.

              (#Apenas um filme por diretor(a) para tornar a lista mais variada)

Os 20 melhores filmes dos anos 1970

  1. ‘Out 1, Noli Me Tangere’, de Jacques Rivette. (França, 1971) [versão com 12h52min. de duração]
  2. ‘Da Nuvem à Resistência’ (Dalla Nube Alla Resistenza), de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. (Itália, 1979)
  3. ‘Numéro Deux’, de Jean-Luc Godard. (França, 1975)
  4. ‘Profissão: Repórter’ (Professione: Reporter), de Michelangelo Antonini. (Itália, 1975)
  5. Nous Ne Vieillirons Pas Ensemble’ – ‘Nós Não Envelheceremos Juntos’, de Maurice Pialat. (França, 1972)
  6. ‘India Song’, de Marguerite Duras. (França, 1975)
  7. ‘Amor de Perdição’, de Manoel de Oliveira. (Portugal, 1979)
  8. ‘O Diabo, Provavelmente’ (Le Diable Probablement), de Robert Bresson. (França, 1977)
  9. ‘Saló ou 120 Dias de Sodoma ’, Pier Paolo Pasolini. (Itália, 1975)
  10. ‘La Maman et la Putain’ – ‘A Mãe e a Puta’, de Jean Eustache. (França, 1973)
  11. ‘De Cierta Manera’, de Sara Goméz. (Cuba, 1974)
  12. ‘Jeanne Dielman’, de Chantal Akerman. (Bélgica, 1975)
  13. ‘L’Enfant Secret’, de Philippe Garrel. (França, 1979)
  14. ‘Sem Essa, Aranha’, de Rogério Sganzerla. (Brasil, 1970)
  15. ‘A Primeira Noite de Tranquilidade’ (La Prima Notte de Quiete), de Valerio Zurlini. (Itália, 1972)
  16. ‘Ludwig’, de Luchino Visconti. (Itália/Alemanha, 1973)
  17. ‘Num Ano de 13 Luas’ – ‘In a Year with 13 Moons’, de Rainer Werner Fassbinder. (Alemanha, 1978)
  18. ‘Change Pas de Main’ – ‘A Chantagem’, de Paul Vecchiali. (França, 1975)
  19. ‘O Espírito da Colmeia’ (El Espíritu de la Colmena), de Victor Erice. (Espanha, 1973)
  20. ‘Sambizanga’, de Sarah Maldonor. (Angola, 1972)

+  60 filmes que poderiam estar entre os 20

  • ‘A Morte de um Bookmaker Chinês’ (The Killing of a Chinese Bookie), de John Cassavetes. (EUA, 1976)
  • ‘Bang Bang’, de Andrea Tonacci. (Brasil, 1971)
  • ‘O Discreto Charme da Burguesia’ (Le Charme Discret de la Bourgeoisie), de Luis Buñuel. (França, 1972)
  • ‘Stalker’, de Andrei Tarkovsky. (URSS, 1979)
  • ‘A Agonia’, de Julio Bressane. (Brasil, 1978)
  • ‘A Última Ceia’ (La Última Cena), de Tomás Gutiérrez Alea. (Cuba, 1976)
  • ‘Vengeance is Mine’ – ‘Minha Vingança’, de Shohei Imamura. (Japão, 1979)
  • ‘São Bernardo’, de Leon Hirszman. (Brasil, 1972)
  • ‘Providence’, de Alain Resnais. (França, 1977)
  • ‘Salmo Vermelho’ – ‘Red Psalm’, de Miklós Jancsó. (Hungria, 1972)
  • O Leão de Sete Cabeças’, de Glauber Rocha. (Brasil/Itália/França, 1970)
  • ‘Trágica Obsessão” (Obsession), de Brian De Palma. (EUA, 1976)
  • ‘A Conversação’ (The Conversation), de Francis Ford Coppola. (EUA, 1974)
  • ‘Trás-Os-Montes’, de António Reis e Margarida Cordeiro. (Portugal, 1976)
  • ‘Blaise Pascal’, de Roberto Rossellini. (Itália/França, 1972)
  • ‘Two-Lane Blacktop’ – ‘Corrida Sem Fim’, de Monte Hellman. (EUA, 1971)
  • ‘A Última Mulher’ (La Dernière Femme), de Marco Ferreri. (Itália/França, 1976)
  • ‘O Desejo’, de Walter Hugo Khouri. (Brasil, 1975)
  • ‘O Açougueiro’ (Le Boucher), de Claude Chabrol. (França, 1970)
  • ‘O Amuleto de Ogum’, de Nelson Pereira dos Santos. (Brasil, 1974)
  • ‘The Man Who Left His Will on Film’ – ‘O Homem que Deixou Seu Testamento no Filme’, de Nagisa Oshima. (Japão, 1970)
  • ‘A Ascensão’ – ‘The Ascent’, de Larisa Shepitko. (URSS, 1977)
  • ‘Veredas’, de João César Monteiro. (Portugal, 1978)
  • ‘O Joelho de Claire’ (Le Genou de Claire), de Eric Rhomer. (França, 1970)
  • ‘Amargo Reencontro’ (Big Wednesday), de John Milius. (EUA, 1978)
  • ‘God Told Me To’ – ‘Foi Deus Quem Mandou’, de Larry Cohen. (EUA, 1976)
  • ‘No Decurso do Tempo’ – ‘Kings of the Road – In The Course of Time’, de Wim Wenders. (Alemanha, 1976)
  • ‘Deep End’ – ‘O Ato final’, de Jerzy Skolimowski. (Inglaterra, 1970)
  • ‘A Mulher Que Inventou o Amor’, de Jean Garret. (Brasil, 1979)
  • ‘A Morte de Maria Malibran’ – ‘The Death of Maria Malibran’, de Werner Schroeter. (Alemanha, 1972)
  • ‘A Árvore dos Tamancos’ (L’Albero degli Zoccoli), de Ermano Olmi. (Itália, 1978)
  • ‘Actas de Marusia’, de Miguel Littin. (México, 1975)
  • ‘A Patriota’ – ‘The Patriotic Woman’, de Alexander Kluge. (Alemanha, 1979)
  • ‘Lua de Papel’ (Paper Moon), de Peter Bogdanovich. (EUA, 1973)
  • ‘Pat Garret & Billy The Kid’, de Sam Peckinpah. (EUA, 1973)
  • ‘A Floresta Petrificada’ – ‘The Petrified Forrest’, de Masahiro Shinoda. (Japão, 1973)
  • ‘A Queda’, de Ruy Guerra e Nelson Xavier. (Brasil, 1978)
  • ‘F For Fake’ – ‘Verdades e Mentiras’, de Orson Welles. (França, 1973)
  • ‘Taxi Driver’, de Martin Scorsese. (EUA, 1976)
  • ‘Em Nome do Pai’ (Nel Nome del Padre), de Marco Bellocchio. (Itália, 1971)
  • ‘Le Théâtre Des Matières’, de Jean-Claude Biette. (França, 1977)
  • ‘Killer of Sheep’- ‘O Matador de Ovelhas’, de Charles Burnett. (EUA, 1978)
  • ‘Rabid’, de David Cronenberg. (Canadá, 1977)
  • ‘Blood Brothers’ – ‘Irmão de Sangue’, de Chang Cheh. (Hong Kong, 1973)
  • ‘Trovão Distante’ – ‘Distant Thunder’, de Satyajit Ray. (Índia, 1973)
  • ‘A Herança’, de Ozualdo Candeias. (Brasil, 1970)
  • ‘O Castelo da Pureza’ (El Castillo de la Pureza), de Arturo Ripstein. (México, 1973)
  • ‘All That Jazz’, de Bob Fosse. (EUA, 1979)
  • ‘História de Melancolia e Tristeza’ – ‘A Tale of Sorrow and Sadness’, de Seijun Suzuki, (Japão, 1977)
  • ‘Profondo Rosso’ – ‘Prelúdio para Matar’, de Dario Argento. (Itália, 1975)
  • ‘Fruto do Paraíso’ – ‘Fruit of Paradise’, de Vera Chytilová. (Tchecoslováquia, 1970)
  • ‘Anna’, de  Alberto Grifi e Massimo Sarchielli. (Itália, 1975)
  • ‘Purgatório Heroica’ – ‘Heroic Purgatory’, de Yoshishige Yoshida. (Japão, 1970)
  • ‘Los Hijo de Fierro’ – ‘Os Filhos de Fierro’, Fernando Solanas. (Argentina, 1978)
  • ‘Coração de Cristal’ – ‘Heart of Glass’, de Werner Herzog. (Alemanha, 1976)
  • ‘Emitai’, de Ousmane Sembene. (Senegal, 1971)
  • ‘Le Pélican’ de Gérard Blain. (França, 1974)
  • ‘Passing Through’, de Larry Clark. (EUA, 1977)
  • ‘Annie Hall’ – ‘Noivo Neurótico, Noiva Nervosa’, de Woody Allen. (EUA, 1977)
  • ‘Lilian M – Relatório Confidencial’, de Carlos Reichenbach. (Brasil, 1975)

+ 60 menções

  • ‘Ecce Bombo’, de Nanni Moretti. (Itália, 1978)
  • ‘Daguerreotypes’, de Agnes Varda. (França, 1975)
  • ‘Os Inconfidentes’, de Joaquim Pedro de Andrade. (Brasil, 1972)
  • ‘A Vocação Suspensa’ (La Vocation Suspendue), de Raul Ruiz. (França, 1978)
  • ‘A Filha De Ryan’ (Ryan’s Daughter), de David Lean. (Grã-Bretanha, 1970)
  • ‘Hitler – Um Filme da Alemanha’ – ‘Hitler – A Film from Germany’, de Hans-Jürgen Syberberg. (Alemanha, 1977)
  • ‘Dersu Uzala’, de Akira Kurosawa. (URSS/Japão, 1975)
  • ‘Roma’, de Federico Fellini. (Itália, 1972)
  • ‘La Tregua’, de Sergio Renán. (Argentina, 1974)
  • ‘Quando Explode a Vingança’ – ‘A Fistful of Dynamite’, de Sergio Leone. (Itália, 1971)
  • ‘O Inquilino’ (Le Locataire), de Roman Polanski. (França, 1976)
  • ‘A Casa Assassinada’, de Paulo César Saraceni. (Brasil, 1974)
  • ‘Muito Prazer’, de David Neves. (Brasil, 1979)
  • ‘Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita’ (Indagine su un Cittadino al di sopra di Ogni Sospetto), de Elio Petri. (Itália, 1971)
  • ‘Assalto à 13ª DP’ (Assault on Precinct 13), de John Carpenter. (EUA, 1976)
  • ‘Damas do Prazer’, de Antonio Meliande. (Brasil, 1978)
  • ‘As Boas Maneiras’ (Les Belles Manières), de Jean-Claude Guiguet. (França, 1978)
  • ‘Poema’ – Poem’, de Akio Jissoji. (Japão, 1972)
  • ‘Confissões Íntimas de Uma Cortesã Chinesa’ – ‘Intimate Confessions of a Chinese Courtesan, de Chor Yuen (Hong Kong, 1972)
  • ‘O Estranho Sem Nome’ (High Plains Drifter), de Clint Eastwood. (EUA, 1973)
  • ‘Sorcerer’ – ‘Comboio do Medo’ de Willian Friedkin. (EUA, 1977)
  • ‘Delitto d’Amore’, de Luigi Comencini. (Itália, 1974)
  • ‘Frenesi’ (Frenzy), de Alfred Hitchcock. (Inglaterra, 1972)
  • ‘O Relatório’ – ‘The Report’, de Abbas Kiarostami. (Irã, 1977)
  • ‘O Segredo do Bosque dos Sonhos’ (Non se Sevizia un Paperino), de Lucio Fulci. (Itália, 1972)
  • ‘Dawn of the Dead’ – ‘Despertar dos Mortos’, de George A. Romero. (EUA, 1978)
  • ‘Banho de Sangue’  (Reazione a Catena), de Mario Bava. (Itália, 1971)
  • ‘Manila na Garras de Néon’ – ‘Manila in the Claws of Light’, de Lino Brocka. (Filipinas, 1975)
  • ‘Hardcore’, de Paul Schrader. (EUA, 1979)
  • ‘Harmonica’, de Amir Naderi. (Irã, 1974)
  • ‘Finis Hominis’, de José Mojica Marins. (Brasil, 1971)
  • ‘O Quarto Verde’ (La Chambre Verte), de Françoise Truffaut. (França, 1977)
  • ’11 x 14’, de James Benning. (EUA, 1977)
  • ‘Confissões de um Comissário de Polícia ao Procurador da República’ (Confessione di un Commissario di Polizia al Procuratore della Repubblica), de Damiano Damiani. (Itália, 1971)
  • ‘Rolling Thunder’ – ‘A Outra Face da Violência’, de John Flynn. (EUA, 1977)
  • ‘Louca Paixão’ (Turks Fruit), de Paul Verhoeven. (Holanda, 1973)
  • ‘Muna Moto’, de Jean-Pierre Dikongue-Pipa. (Camarões, 1975)
  • ‘O Franco Atirador’ (The Deer Hunter), de Michael Cimino. (EUA, 1978)
  • ‘O Massacre da Serra Elétrica’ (The Texas Chain Saw Massacre), de Tobe Hooper. (EUA, 1974 )
  • ‘Le Fond de L’Air est Rouge’ – ‘O Fundo do Ar é Vermelho’, de Chris Marker. (França,1977)
  • ‘Mandingo’, Richard Fleischer. (EUA, 1975)
  • ‘Crioulo Doido’, de Carlos Alberto Prates Correia. (Brasil, 1973)
  • ‘Milestones’, de Robert Kramer. (EUA, 1975)
  • ‘We Can’t Go Home Again’, de Nicholas Ray. (EUA, 1973)
  • ‘Wanda’, de Barbara Loden. (EUA, 1970)
  • ‘Juvenile Court’, de Frederick Wiseman. (EUA, 1973)
  • ‘Faustão – O Cangaceiro do Rei’, de Eduardo Coutinho, 1971. (Brasil, 1971)
  • ‘A Breve Noite das Bonecas de Vidro’ (La Corta Notte Delle Bambole di Vetro) de Aldo Lado. (Itália, 1971)
  • ‘Org’, de Fernando Birri. (Itália, 1979)
  • ‘Mar de Rosas’, de Ana Carolina. (Brasil, 1978)
  • ‘O Descarte’, de Anselmo Duarte. (Brasil, 1973)
  • ‘A Montanha Sagrada’ (La Montaña Sagrada), de Alejandro Jodorowsky. (México, 1973)
  • ‘As Aventuras Amorosas de Um Padeiro’,de Waldyr Onofre. (Brasil, 1975)
  • ‘O Jardim das Espumas’, de Luiz Rosemberg Filho. (Brasil, 1970)
  • ‘A Rainha Diaba’, de Antonio Carlos da Fontoura. (Brasil, 1974)
  • ‘A Rosa de Ferro’ (La Rose de Fer), de Jean Rollin. (França, 1973)
  • ‘A Culpa’ de Domingos de Oliveira. (Brasil, 1971)
  • ‘L’Uomo, la Donna e la Bestia’ – ‘O Homem, a Mulher e a Besta’, de Alberto Cavallone. (Itália, 1977)
  •  ‘Ódio’, de Carlo Mossy. (Brasil, 1977)
  • ‘Eu Matei Lúcio Flávio’, de Antonio Calmon. (Brasil, 1979)

*A lista foi feita a pedido de Pedro Lovallo para uma pesquisa com diversos críticos e pesquisadores sobre o cinema dos anos 1970.

‘Out 1, Noli Me Tangere’, de Jacques Rivette

‘Capitu e o Capítulo’, de Julio Bressane

Por Fernando Oriente

Em ‘Capitu e o Capítulo’, reforçando o que vem fazendo desde os anos 1990, Bressane traz a força da teatralidade na encenação, com toda a construção de cena baseada em planos estáticos em que uma valorização dos tableaux se dá de maneira primorosa pela disposição dos corpos e objetos dentro do quadro, pela maestria do maneirismo usado nas composições, pelo devir da luz e por meio da junção espaço-temporal entre personagens, texto, sons, fragmentos dramáticos e espaços cênicos, bem como pela espessura densa empregada na mise-en-scène.

Ao mesmo tempo em que Bressane reforça a potência da teatralidade especificamente cinematográfica no cinema contemporâneo (muito forte no cinema português recente), o cineasta remete a uma linguagem de encenação que remete ao primeiro cinema, especialmente aquela dos filmes europeus dos anos 1910, em que a encenação se dava por meio de uma  mise en cadre da qual os plateaux eram o centro a partir dos quais a ação era construída, com ênfase nos posicionamentos dos atores, seus deslocamentos e distâncias em relação à câmera fixa e a profundidade de campo era explorada como recurso composicional e dramático dentro de ambientes internos. Mas Julio Bressane vai além e faz essas presenças no plano estático reforçarem a materialidade dos corpos e o que eles representam na dramaturgia – suas personas ficcionais emanam de seu próprio ser em cena e em relação à potência do décor. Como cineasta tardio, Bressane retoma esses elementos do primeiro cinema e os reorganiza e atualiza por meio do maneirismo personalíssimo de sua mise-en-scène.

‘Capitu e o Capítulo’ promove uma junção de pequenos instantes de ‘Dom Casmurro’ – onde a narrativa se dá na tela de maneira labiríntica, a partir de fragmentos interrompidos do romance e interpostos pela decupagem e a montagem – com passagens da obra reimaginadas e (re)interpretadas por Bressane. São as tensões da escritura, em meio à dissolução dos traços impressos no discurso do filme, que o longa promove constantemente por meio de uma construção dramática em processo.

Esses momentos são intercalados com uma expansão do texto machadiano em direção à literatura brasileira dos séculos XIX e XX. Essa junção é promovida pela presença do personagem do narrador, que é ao mesmo tempo Bentinho (já mais velho) e o próprio Machado de Assis, além de uma extensão do próprio Bressane, que se coloca em cena por meio desse narrador-personagem.

As reflexões do narrador sobre poetas como Álvares de Azevedo e Junqueira Freire, com direito a leitura de alguns de seus poemas, bem como a citação direta de um ensaio de Lima Barreto, fazem com que Bressane relacione a obra machadiana com o contexto literário que o precedeu e o seguiu. Esses momentos são uma forma do diretor interromper as sequências diretamente extraídas ou repensadas de ‘Dom Casmurro’ e contextualizar o romance com o pensamento histórico-literário, social e dramático que são a fonte da moderna literatura brasileira. 

Além disso, Bressane reforça um elemento que vem se utilizando em seu cinema recente, a constante inserção de cenas de seus antigos filmes, criando, dentro de uma obra fechada, uma relação centrífuga com a evolução de seu próprio fazer cinematográfico. Processo esse que culmina em ‘A Longa Viagem do Ônibus Amarelo’ (2023), longa monumental em que Bressane repassa, através de imagens e textos, toda sua obra por meio de um excepcional trabalho de montagem reflexiva

As cenas digressivas do narrador (e os excertos de antigos filmes do diretor) se intercalam  a fragmentos do mais célebre romance de Machado. Nestes, Bressane põe a ênfase na força erótica de Capitu, Sacha e Escobar e no contraste dessa potência erótica do desejo com um quase assexuado Bentinho, mostrado como um homem fraco, frágil e incapaz de romper com sua mesquinha posição moral pequeno burguesa.

Julio Bressane cria um universo cênico de pequenos e belíssimos instantes dramáticos, em que potencializa a força do texto falado, das imagens, da simples presença dos atores em cena e do uso destacado da profundidade de campo em ambientes fechados (assim como de toda a escala de planos dentro do quadro). Além disso, há um notável destaque aos objetos de cena, tudo amalgamado num vir a ser  que reforça sensações e os desejos. Toda essa linguagem fílmica se dá dentro de um processo composicional anti-naturalista, em que a significação das ações e, principalmente, das pulsões, sentimentos e hesitações dos personagens ganham vida por meio de falas declamadas, de instantes de um silêncio espesso, da expressividade dos cenários, de olhares, gestos e expressões, bem como por meio da extasiante construção dos tableaux.

‘Luz nos Trópicos’, de Paula Gaitán

Por Fernando Oriente

O longa de Paula Gaitán atinge e supera toda a enorme ambição do projeto. Um filme dessa grandeza necessita de vários textos críticos ou um artigo mais extenso para dar conta de todas as suas possibilidades de interpretação. Por aqui, apenas algumas observações. Assim que eu rever mais uma vez ’Luz nos Trópicos’, volto ao texto.

Impressiona a liberdade da câmera da diretora, que explora todas as possibilidades indiciais da imagem. Imagens que se pautam e constroem numa observação sensual, sensorial e poética dos espaços (da natureza viva  e quente da região pantaneira do Xingu aos espaços urbanos de concreto, aço, asfalto e vidro de Nova Iorque, bem como ambientes naturais gelados de rios, lagos e bosques no interior dos EUA).

A liberdade discursiva do filme se desdobra constantemente, seguindo os fluxos das águas dos rios que cruzam o continente americano, desde o frio estadunidense ao calor dos trópicos do Xingu. A câmera da Paula não se impõem limites ou regras, registra tudo de todas as formas e sempre em função da luz; das texturas e intensidades luminosas – desde os espaços abertos onde personagens transitam até os detalhes de corpos, objetos, roupas,  plantas, águas, animais, ruas, casas e prédios. Natureza e civilização.

A questão do pertencimento aos espaços, à terra e à natureza em que os personagens (europeus, estadunidenses, mestiços brasileiros, indígenas – colonizadores e vítimas do processo histórico de colonização) se encontram e na qual se fundem, se perdem ou se encontram é central na relação que diretora constrói entre os corpos e os ambientes que acolhem esses sujeitos. Só as comunidades indígenas apresentam uma real comunhão entre seus seres e a Natureza onde vivem.

Os rios que conduzem sujeitos desterrados a diferentes locais geográficos são os mesmos rios que ligam diferentes tempos históricos, diferentes povos, diferentes culturas. A transitoriedade do ser humano em constante contraste com a continuidade e a permanência da Natureza.

Os dois fios narrativos que conduzem a primeira metade do filme são interrompidos, quando um personagem (presente na segunda narrativa: a expedição de europeus à região do Pantanal no século XIX) atravessa o tempo e se funde ao presente dos dias de hoje, no qual retornou um desterrado em busca de sua ancestralidade indígena – personagem da primeira narrativa que abre ‘Luz nos Trópicos’.

A segunda metade do longa é um exercício brilhante de montagem livre e disrupção narrativa (de tudo que foi erigido de forma fragmentária na primeira parte), que paralelamente intercala registros de personagens deslocados e em permanente movimento na metrópole americana e nos espaços de natureza gelada do hemisfério norte com cenas do Pantanal, de comunidades indígenas do Xingu, bem como introduz cenas alegóricas e situações oníricas.

Distintos registros – digital, super 8, 16mm, fotografias, pinturas, desenhos e imagens de arquivo (cenas do primeiro longa de Paula Gaitán, ‘Uaká’, filmado no Xingu em 1987) – são intercalados com textos em voz over, em diferentes idiomas, que penetram a cena e ampliam seu espalho diegético-temporal.

A montagem da banda sonora é tão potente quanto as imagens – sons, ruídos, vozes, textos, cantos e música que constantemente dialogam e interagem dialeticamente com o campo imagético e remetem ao enorme extracampo que o filme não para, em momento algum, de tensionar.

‘Luz nos Trópicos’ é um filme que se dá ao olhar e à escuta como matéria heterogênea, com camadas e mais camadas de sobreposições espaciais, temporais, visuais e sonoras. Uma obra polifônica. Mas, ao mesmo tempo, é um longa em que o fazer cinema, o construir do cinemático como (e em) processo criador está presente em cada plano e vai além do filme após o término da projeção – uma constante presença do cinema como movimento, como devir imagem-som que se dá no filme como matéria e se prolonga no espectador durante o ato de assistir e depois como memória ativa daquilo que foi visto e ouvido.

Um filme que usa as possibilidades do cinema para criar uma experiência inclassificável e incontornável de imagens e sons belíssimos, discursos e mais discursos e ainda é repleto de alternâncias – espaciais, temporais e materiais – de ritmo e fruição. Ao mesmo tempo, trata-se de um longa que dialoga com toda a obra da cineasta. Mais um filme extraordinário de Paula Gaitán.

‘A Cidade dos Abismos’, de Priscyla Bettim e Renato Coelho

Por Fernando Oriente

O centro de São Paulo se tornou um mito no cinema, como também na literatura. Essa mitologia em torno de um espaço degradado surgiu a partir dos anos 1960, quando a região central da maior cidade do país iniciou seu processo de deterioração. Até a década de 1950, o centro paulistano era pujante, frequentado pelas classes médias e altas, que ao mesmo tempo continha uma população pauperizada em seus cortiços e pequenos edifícios. mas que não impediam a circulação das classes abastadas em seus bares, boites, cafés, restaurantes, doceiras, cinemas e teatros. A degradação desse espaço alimentou uma nova relação da classe artística com a região central de SP, que no caso do cinema se traduziu no cinema marginal (ou de invenção) e depois nos filmes da Boca do Lixo. A Rua do Triunfo era o local onde se encontravam as produtoras e distribuidoras de filmes. Por seus quarteirões andavam cineastas, fotógrafos, roteiristas, montadores, produtores, bem como atrizes e atores que trabalhavam diretamente tanto nos filmes de invenção quanto nos longas da Boca dos anos 1960, 1970 e 1980. Mas isso acabou. Hoje a Rua do Triunfo não tem mais nenhum vestígio desse mundo cinematográfico, mas existe na mitologia de um cinema incontornável que marcou a cinematografia paulistana e brasileira.

Em 2023 o centro de São Paulo é habitado por moradores de rua, dependentes de crack, prostitutas, travestis e pequenos traficantes, além de trabalhadores pobres, ao mesmo tempo em que abriga artistas, poetas, escritores, intelectuais e membros da classe média que se recusam abandonar a região e lá ainda moram, seja no Edifício Copam, nos prédios das Avenidas São Luís e Viera de Carvalho ou na regiões do entrono da Praça da República e do Largo do Arouche.

Essa longa introdução é necessária para nos aproximarmos desse ótimo primeiro longa de Priscyla Bettim e Renato Coelho. Em ‘A Cidade dos Abismos’ o centro de SP é tão personagem quanto os tipos que dentro dele interagem. E o vazio é a marca central, esse vazio espacial e simbólico da região que se transporta para as existências dos personagens.

No longa temos uma pequena narrativa fragmentada que se desenrola em torno de quatro personagens que habitam a região central de SP – duas travestis, uma restauradora de filmes que trabalha na Cinemateca e um imigrante africano dono de um boteco fuleiro. Uma das travestis é assassinada no bar do africano e os outros três personagens passam a investigar por conta própria os autores desse crime. A grandeza do filme está em não se ater apenas a essa evolução dramática e promover uma mescla de situações alegóricas, que vão desde a entrada em cena de personagens marginais desse tecido urbano degradado do centro paulistano – que surgem na tela como arquétipos, recitam poesias diretamente para a câmera, ou apenas se movem como presenças fantasmáticas dentro desse vazio urbano -, passando por um sonho de uma personagem que é narrado e depois encenado, pela presença fantasmagórica da travesti assassinada que surge em cena perambulando pelas ruas e praças sujas e deterioradas, por um bizarro Papai Noel que no dia de Natal, em plena Cracolândia, troca brinquedos por pedras de crack e por momentos de puro experimento com imagens – com cenas captadas em super 8 que registram as ruas, calçadas e fachadas de casas e prédios do centro e que são apresentadas em velocidade acelerada e montadas por justaposições e fusões de planos.

O primeiro longa de Bettim e Coelho é um filme híbrido, em que a pequena narrativa é constantemente intercalada por experimentos com as texturas da imagem  – o filme todo é captado em película; 16mm na maioria das cenas, super 8 nas sequências mais experimentarias e 35mm em uma única cena em que uma das protagonistas canta ao lado do personagem vivido por Arrigo Barnabé -, por planos e sequências alegóricos, por uma constante inversão entre o colorido e o preto e branco, além de textos em voz over que penetram o espaço diegético. A filiação de Bettim e Coelho é o cinema de invenção, o experimental – tendo ‘Limite’, de Mario Peixoto, como o marco zero na genealogia do cinema experimental brasileiro. O longa de 1931 de Peixoto, esse cânone do cinema mundial, é citado em imagens mais de uma vez ao longo do filme.

Mas mesmo nesse deleite de imagens e sons que ‘A Cidade dos Abismos’ oferece, a dupla de realizadores consegue promover uma perfeita junção entre o alegórico e o discurso dramático centrado na presença desses quatro personagens centrais, seu vazio existencial, as relações de pequenas afeições que surgem entre eles e a fragilidade de suas existências que os conduzem a um desfecho trágico, onde a morte violenta nada representa para a “sociedade”. São vazios existências que ao serem eliminados da forma mais brutal somem da mesma forma como viveram, num limbo sócio-existencial. É o centro de São Paulo que abriga ao mesmo tempo que engole e faz desvanecer esses seres.

‘A Cidade dos Abismos’ promove uma verdadeira imersão no tecido urbano do centro de São Paulo, tanto em sua materialidade quanto em sua simbologia – e aqui, o fato do longa ser captado em películas de diferentes formatos permite uma primorosa valorização sensória do grão da imagem impresso na tela. Entre as cenas  alegóricas e experimentais, temos belos momentos de encenação dos dramas dos quatro protagonistas, filmados em ângulos fechados e planos de situação – que oferecem uma sensação de aprisionamento espacial e existencial desses personagens -, um registro pujante dos espaços cênicos, assim como de diálogos lentos, dos silêncios e de deslocamentos por ruas e becos, bem como por uma interação entre esses personagens em que rasgos de amizade e empatia afloram em meio a conversas corriqueiras e o desejo de descobrir os assassinos da travesti. Para completar, temos participações especiais de figuras marcantes da identidade cultural e social da cidade de São Paulo como Arrigo Barnabé (que assina a trilha sonora original do filme), o poeta Claudio Willer, o ator e encenador Marcelo Drummond (principal nome do Teatro Oficina depois de Zé Celso) e do padre Julio Lancelotti.

Mas talvez o maior triunfo desse belíssimo filme seja a valorização do plano cinematográfico pelos seus diretores. O plano não apenas como significante, mas como locus da potência da imagem; de tudo que ela carrega por si só – tanto como discurso dramático, discurso simbólico-alegórico, quanto como devir da luz e do movimento; bem como espaço onde a palavra e os ruídos são impressos de forma centrífuga e centrípeta – a partir do interior do campo em expansão ao extracampo e ao ante-campo e do fora de quadro para o interior do quadro. É desse mínimo denominador comum do filme – o plano – que ‘Cidade dos Abismos’ se ergue para o encanto sensorial do espectador.

O primeiro longa de Priscyla Bettim e Renato Coelho tem os pés firmes em nosso tempo, mas constantemente se desloca genealogicamente em direção a elementos constitutivos do cinema de invenção, do experimental, do cinema da Boca e de artistas que encarnam a metrópole paulistana em suas próprias presenças. ‘A Cidade dos Abismos’ transborda em suas imagens e sons essa cidade caótica e sua região central e reforça a mitologia do centro paulistano, mas de maneira inventiva, orgânica e autêntica, onde a visão dos realizadores foge de clichês e preconceitos e retira uma beleza de onde menos se espera, sem mascarar a realidade concreta de um espaço deteriorado e abandonado, do vazio e das existências que nele sobrevivem.

Os 20 Melhores Filmes de 2022 (entre as estreias nos cinemas do Brasil no ano)

Por Fernando Oriente

Estes são os vinte melhores filmes que estrearam nos cinemas de São Paulo (e outras cidades brasileiras) em 2022 na minha opinião. A lista volta a ser como havia sido sempre até 2019, levando em conta apenas as estreias em nossas salas. Por isso alguns filmes presentes nas listas de 2020 e 2021 estão nesta lista. Em 20 e 21, levei em consideração, devido à pandemia e ao fechamento dos cinemas, filmes lançados nos respectivos anos e assistidos em diversas plataformas. Com algumas revisões, vários filmes cresceram demais para mim, enquanto outros diminuíram um pouco seu impacto, além de novos títulos, lançados apenas ano passado, terem entrado na lista final.

A qualidade dos filmes desta lista é muito alta devido ao número de estreias e ao fato dos filmes serem lançamentos de diferentes anos. Os longas aqui relacionados vão de obras-primas a filmes excelentes e encerra com obras no mínimo notáveis. Com são apenas 20 filmes, alguns belos longas que estrearam em 2022 ficaram de fora.

Os 20 melhores filmes de 2022

  1. ‘Vitalina Varela’, de Pedro Costa. (Portugal)
  2. ‘Drive My Car’, de Ryusuke Hamaguchi. (Japão)
  3. Crimes do Futuro’ (Crimes of the Future), de David Cronenberg. (Canadá)
  4. ‘O Traidor’ (Il Traditore), de Marco Bellocchio. (Itália)
  5. ‘Tre Piani’, de Nanni Moretti. (Itália)
  6. ‘Il Buco’, de Michelangelo Frammartino. (Itália)
  7. ‘A Mulher de Um Espião’, de Kiyoshi Kurosawa. (Japão)
  8. ‘Dias – Days’, de Tsai Ming Liang. (Taiwan)
  9. ‘Fabian – O Mundo Está Acabando’, de Dominik Graf. (Alemanha)
  10. ‘Encontros’ (Introduction), de Hong Sang-Soo. (Coréia do Sul)
  11. ‘Roda da Fortuna’, de Ryusuke Hamaguchi. (Japão)
  12. ‘Memoria’, de Apichatpong Weerasethakul. (Colômbia/Tailândia)
  13. ‘Benedetta’, de Paul Verhoeven. (França)
  14. ‘Mães Paralelas’ (Madres Paralelas), de Pedro Almodóvar. (Espanha)
  15. ‘Curtas Jornadas Noite Adentro’, de Thiago B. Mendonça. (Brasil)
  16. Armageddon Time’, de James Gray. (EUA)
  17. ‘Rua Guaicurus’, de João Borges. (Brasil)
  18. ‘Nope – Não! Não Olhe!”, de Jordan Peele. (EUA)
  19. ‘Marte Um’, de Gabriel Martins. (Brasil)
  20. ‘Licorice Pizza’, de Paul Thomas Anderson. (EUA)

‘Marte Um’, de Gabriel Martins

Por Fernando Oriente

Se o afeto – uma das emoções mais básicas e uma das afecções mais fortes na constituição da subjetiva humana – foi muitas vezes trabalhado pelo cinema brasileiro contemporâneo como uma muleta dramatúrgica (que servia para esconder deficiências e limitações discursivas de uma série de filmes), podemos afirmar que ele – o afeto – foi resgatado como potência, como um elemento composicional orgânico pelos jovens cineastas mineiros, que há mais de uma década realizam o que de melhor nosso cinema vem produzindo. Não querendo eliminar desse horizonte os belos filmes produzidos Brasil a fora – seja no Ceará, em Pernambuco, em São Paulo, no Rio ou em Brasília -, as obras que saem de Minas Gerais – dirigidas por nomes como André Novais, Affonso Uchoa, Juliana Antunes, Gabriel Martins, Maurílio Martins e João Borges, entre outros –   formam cada vez mais um corpo de filmes que conseguem traduzir dialeticamente tanto a realidade socioeconômica brasileira, bem como os conflitos individuais inseridos dentro da totalidade das relações sociais presentes no país.

Nestes retratos potentes da conjuntura brasileira que caracterizam os filmes mineiros contemporâneos, o afeto entra como elemento composicional mediador entre a subjetividade autoconsciente dos personagens e seus conflitos e tensões diante de uma realidade social marcada pela crescente superexploração da força de trabalho e da deterioração das condições materiais de vida da classe trabalhadora – a classe social a que pertencem os personagens desses filmes. Mas afeto aqui não é clichê piegas, nem rebaixamento das relações sociais entre os sujeitos dramáticos a um subjetivismo individualista apartado da totalidade do real concreto, onde afetividade seria apenas uma fuga desse real e uma espécie de horizonte final limitador, no qual esses tipos seriam condenados a um conformismo afetivo resignado e alienante. Afeto para os jovens realizadores mineiros é uma força propulsora, que faz seus personagens seguirem adiante, encarando e questionando criticamente o massacre a que são submetidos pelos mecanismos de exploração do capitalismo depende brasileiro, tendo em vista não apenas sua sobrevivência, mas também formas de superar seus problemas, nas quais o afeto entra um elemento de identificação de classe, seja dentro do núcleo familiar, seja no interior da comunidade em que vivem.  

Uma identificação de classe que surge mesmo em um mundo em que a consciência de classe é cada vez mais excluída do horizonte da classe trabalhadora, desarmada cada dia mais pela capitulação dos partidos tradicionais de esquerda à ordem liberal burguesa, bem como pela impotência dos sindicados – dominados pela pelagagem burocrática de seus principais dirigentes –  e dos movimentos populares diante da ofensiva brutal do capital em meio a crise estrutural em que estamos metidos.

Toda essa contextualização introdutória torna-se necessária para nos aproximarmos de ‘Marte Um’, segundo longa de Gabriel Martins – uma obra na qual tudo o que descrevemos acima faz-se presente de maneira notável. No filme temos um retrato fiel e orgânico de uma família de classe média baixa, onde Wellington (o pai) trabalha como porteiro de um prédio de luxo, enquanto Tércia (a mãe) é faxineira diarista. A filha mais velha, Eunice, estuda direito e dá aulas particulares e o caçula, Deivid, frequenta o ensino fundamental, joga futebol em um time de várzea e deseja se tornar astrofísico, nutrindo o sonho de participar de um projeto de colonização do planeta Marte.

Em meio à dureza do emprego com salário rebaixado de Wellington e na instabilidade do trabalho intermitente de Tércia, a condição financeira da família piora a cada dia. Diante desse processo de deterioração material de suas condições de existência e subsistência, a vida real segue e, por mais estremecimentos e confrontos que surjam entre os quatro membros dessa família, é o afeto como potência agenciadora e força mediadora entre eles que os mantém unidos e os fortalece.

E a vida segue. Eunice decide mudar-se para um apartamento com sua namorada (uma jovem que pertence a uma família mais rica) e deixar a casa dos pais, uma decisão que não é muito bem recebida por eles. Ao mesmo tempo, Deivid luta contra a obsessão do pai em fazê-lo seguir carreira no futebol, nutrindo o sonho de que o sucesso do filho como jogador profissional pode ajudar economicamente a família, bem como dar um sentido material concreto à paixão exacerbada de Wellington pelo futebol. Mas para o garoto, seguir no esporte significa abrir mão de seu desejo de estudar astrofísica.

A complexidade das contradições socioeconômicas dentro das quais a subjetividade dos quatro protagonistas estão inseridos é aprofundada por novos elementos dramáticos que vão se acumulando organicamente dentro do discurso narrativo. Após um trauma sofrido durante uma pegadinha televisa na qual foi vítima, Tércia passa a sofrer de crises de ansiedade que escancaram sua fragilidade, fazendo com que pense que foi amaldiçoada e que com isso passaria a trazer influências negativas para aqueles que ama. A obsessão de Wellington em fazer do filho um jogador profissional passa a ameaçar seu emprego, já que o faz deixar de se dedicar de maneira subserviente ao trabalho – no qual além de mal remunerado, é explorado pela síndica do prédio, que o faz trabalhar de graça cuidando de seu apartamento durante suas saídas. Enquanto isso tanto Eunice quanto Deivid têm de enfrentar a resistência dos pais em relação aos rumos que pretendem dar a suas vidas.

Gabriel Martins se utiliza de maneira precisa desse repertório de pequenas situações dramáticas que se entrelaçam, nas quais a realidade concreta se choca com as limitações materiais, bem como com os desejos de autodeterminação subjetiva de seus personagens, para compor um retrato complexo das dificuldades que o real concreto impõe à vida de uma família típica da classe trabalhadora brasileira contemporânea. ‘Marte Um’ parte de dramas individuais e interligados dentro da existência precária de seus protagonistas para relacioná-los à totalidade das relações sociais do país. Por meio de uma aproximação meticulosa e afetuosa à existência individual de cada personagem, o filme aprofunda uma observação crítica sobre o Brasil. O próprio sonho de Deivid em fazer parte de uma missão de colonização de Marte – que poderia ser visto como mero devaneio alienante de um adolescente – adquire uma função concreta, uma metáfora potente que carrega em seu simbolismo a vontade de um jovem pertencente as camadas subalternas de transformar e superar os limites impostos a sua classe pelo sistema de exploração do capital.

A mise-en-scène de Martins concentra-se na captura realista – não meramente naturalista – de seus personagens, tanto de suas ações quanto de seus aspirações. A câmera procura sempre o rosto destes personagens, priorizando o registro das situações dramáticas por meio de ângulos fechados, em closes que permitem que as expressões faciais dos tipos refratem seus sentimentos, dúvidas, angústias, frustrações e desejos. A encenação se detém nos significantes contidos em cada gesto, em cada olhar, bem como na franqueza das falas e na força dos diálogos. Uma mise-en-scène do essencial, onde as formas de composição são interdependentes e nada é excessivo ou destoante.

‘Marte Um’ é um filme que a encenação de Gabriel Martins condiciona a forma a partir de um conteúdo dramático-discursivo que dialeticamente engendra essa própria forma fílmica; a construção formal existe a partir e para o conteúdo do discurso. Trata-se de uma enunciação realista que sabe abrigar – dentro de sua constante reflexividade crítica sobre as relações sociais no pais e a situação de classe de seus personagens, que se dão dentro da totalidade do real concreto da conjuntura nacional – os pequenos dramas, o valor social, subjetivo e ao mesmo tempo transformador que cada personagem carrega dentro de si, mesmo que forma latente.

E ao final do longa nos vemos diante dos quatro membros da família sentados juntos no quintal da casa, quatro vidas individuais imensas em sua potencialidade humana universal, e que diante da fragilidade material e da insegurança em relação ao futuro de que são vítimas, encontram no afeto um elemento aglutinador e a partir do qual essa família não só se mantém unida como se potencializa para enfrentar as adversidades, não de forma resignada, mas como nas palavras de Wellington para seu filho; “A gente dá um jeito”. Um afeto que dá sustentação emocional e material para enfrentar a realidade e lutar para transformá-la, mesmo sem saber por onde começar.

Os 20 melhores filmes dos anos 1980 (+ 65 grandes longas da década)

Por Fernando Oriente

Aqui está a lista com meus 20 filmes de longa-metragem favoritos da década de 1980. Pessoalmente, acho as décadas de 1960, 70 e 80 a melhor época do cinema mundial, com maior número de grandes filmes e grandes cineastas. Por isso, essa relação dos 1980 é acrescida de 33 filmes que poderiam estar entre os 20 primeiros e por mais vinte e sete longas que adoro. Mesmo com 85 títulos relacionados, vários ótimos filmes e cineastas acabaram ficando de fora.

 *Apenas um filme por diretor para tornar a lista mais variada

Os 20 melhores filmes dos anos 1980

  1. ‘Passion’, de Jean-Luc Godard. (França, 1982)
  2. ‘Aos Nossos Amores’ (À Nos Amours), de Maurice Pialat. (França, 1983)
  3. ‘A Idade de Terra’, de Glauber Rocha. (Brasil, 1980)
  4. ‘Palombella Rossa’, de Nanni Moretti. (Itália, 1989)
  5. ‘O Portal do Paraíso’ (Heaven’s Gate), de Michael Cimino. (EUA, 1980)
  6. ‘Le Pont du Nord’, Jacques Rivette. (França, 1981)
  7. ‘Taipei Story’, de Edward Yang. (Taiwan, 1985)
  8. ‘Blow Out – Um Tiro na Noite’, de Brian De Palma. (EUA, 1981)
  9. ‘Cão Branco’, de Samuel Fuller. (EUA, 1982)
  10. ‘Francisca’, de Manoel de Oliveira. (Portugal, 1981)
  11. ‘Identificação de uma Mulher’, de Michelangelo Antonioni. (Itália, 1982)
  12. ‘O Império do Desejo’, de Carlos Reichenbach. (Brasil, 1981)
  13. ‘A Opção ou As Rosas da Estrada’, de Ozualdo Candeias. (Brasil, 1981)
  14. ‘O Dinheiro’ (L’Argent), de Robert Bresson. (França, 1983)
  15. ‘Videodrome’, de David Cronenberg. (Canadá, 1983)
  16. ‘Recordações da Casa Amarela’, de João César Monteiro. (Portugal, 1989)
  17. ‘Viver e Morrer em Los Angeles’, de William Friedkin. (EUA, 1985)
  18. ‘Rumble Fish – O Selvagem da Motocicleta’, de Francis Ford Coppola. (EUA, 1983)
  19. ‘Sul’ (Sur), de Fernando Solanas. (Argentina, 1988)
  20. ‘Tout une Nuit’, de Chantal Akerman. (Bélgica, 1982)

+ 36 filmes que poderiam estar entre os 20

  • ‘O Raio Verde’, de Eric Rohmer. (França, 1986)
  • ‘Rosa la Rose, Fille Publique’, de Paul Vecchiali. (França, 1986)
  • ‘Inspector Lavardin’, de Claude Chabrol. (França, 1986)
  • ‘Melô’ , de Alain Resnais. (França, 1986)
  • ‘Noites Paraguayas’, de Aluysio Raulino. (Brasil, 1982)
  • ‘Documenteur’, de Agnès Varda. (França/EUA, 1981)
  • ‘Conversas no Maranhão’, de Andrea Tonacci. (Brasil, 1983)
  • ‘Ela Passou Algumas Horas Sob a Luz do Sol’, de Philippe Garrel. (França, 1985)
  • O Sul” (El Sur), de Victor Erice. (Espanha, 1983)
  • ‘Relações de Classe’, de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. (Alemanha, 1984)
  • ‘A Time to Live, A Time to Die’, de Hou Hsiao-Hsien (Taiwan, 1985)
  • ‘Sombras no Paraíso’ – ‘Shadows in Paradise’, de Aki Kaurismäki. (Finlândia, 1986)
  • ‘Rosa de Areia’, de António Reis e Margarida Cordeiro. (Portugal, 1989)
  • ‘As Três Coroas do Marinheiro’, de Raúl Ruiz. (França, 1983)
  • ‘O Rufião’, de Shohei Imamura. (Japão, 1987)
  • ‘Le Rebelle’, de Gérard Blain. (França, 1980)
  • ‘O Desespero de Veronika Voss’, de Reiner Werner Fassbinder. (Alemanha, 1982)
  • ‘‘Tenebre’, de Dario Argento. (Itália, 1982)
  • ‘The Thing – Enigma de Outro Mundo’, de John Carpenter, (EUA, 1982)
  • ‘Conhecendo o Grande e Vasto Mundo’. de Kira Muratova. (URSS, 1980)
  • ‘Honkytonk Man – A Última Canção’, de Clint Eastwood. (EUA, 1982)
  • ‘Onde Fica a Casa do meu Amigo?’, de Abbas Kiarostami. (Irã, 1987)
  • ‘Simone Barbès ou a Virtude’, de Marie-Claude Treilhou. (França, 1980)
  • ‘Yeelen – A Luz’, de Souleymane Cissé. (Mali,1987)
  • ‘Eles Não Usam Black-Tie’, de Leon Hirszman. (Brasil, 1981)
  • ‘Era Uma Vez na América’. De Sergio Leone. (Itália/EUA, 1984)
  • ‘Nostalgia’, de Andrei Tarkovsky. (Itália/URSS, 1983)
  • ‘De Barulho e de Fúria’ (De Bruit et de Fureur), de Jean-Claude Brisseau. (França, 1988)
  • ‘Eros, O Deus do Amor’, de Walter Hugo Khouri. (Brasil, 1981)
  • ‘La Nación Clandestina’, de Jorge Sanjínes. (Bolívia, 1989)
  • ‘Das Tripas Coração’, de Ana Carolina. (Brasil, 1982)
  • ‘Amantes’ (Love Streams), de John Cassavetes. (EUA, 1984)
  • ‘Não Brinque com Fogo’, de Tsui Hark. (Hong Kong, 1980)
  • ‘Manhunter – Caçador de Assassinos’, de Michael Mann. (EUA, 1986)
  • ‘Out of the Blue – Anos de Rebeldia’, de Dennis Hopper. (EUA, 1980)
  • ‘Terror nas Trevas – The Beyond’  (L’Aldila), de Lucio Fulci. (Itália, 1981)

+ 29 menções

  • ‘O Futuro É Mulher’, de Marco Ferreri. (Itália, 1984)
  • ‘Hôtel des Amériques’, de André Techiné. (França, 1981)
  • ‘O Estado das Coisas’, de Wim Wenders. (Alemanha/Portugal, 1982)
  • ‘Depois de Horas’, de Martin Scorsese. (EUA, 1985)
  • ‘Hasta Cierto Punto’, de Tomás Gutiérrez Alea. (Cuba, 1983)
  • ‘Gli Occhi, La Bocca’ de Marco Bellocchio. (Itália, 1982)
  • ‘E La Nave Va’, de Federico Fellini. (Itália, 1983)
  • ‘Blade Runner – O Caçador de Androides’, de Ridley Scott. (EUA, 1982)
  • ‘Memórias do Cárcere’, de Nelson Pereira dos Santos. (Brasil, 1984)
  • ‘Ms. 45 – Sedução e Vingança’, de Abel Ferrara. (EUA, 1981)
  • ‘Erêndira’, de Ruy guerra. (México, 1983)
  • Panelstory – O Nascimento De Uma Comunidade‘, de Vera Chytilová. (Tchecoslováquia, 1980)
  • ‘Fitzcarraldo’, de Werner Herzog. (Alemanha, 1982)
  • ‘Nem Tudo É Verdade’, de Rogério Sganzerla. (Brasil, 1986)
  • ‘Danação’, de Bela Tarr. (Hungria, 1988)
  • ‘Um Lobisomem Americano em Londres’, de John Landis. (EUA/Inglaterra, 1981)
  • ‘Bar Esperança’, de Hugo Carvana. (Brasil, 1983)
  • ‘Shoah’, de Claude Lanzmann. (França, 1985)
  • ‘Matador’, de Pedro Almodóvar. (Espanha, 1986)
  • ‘O Quarto Homem’, de Paul Verhoeven (Holanda, 1983)
  • ‘Sermões – A História de Antônio Vieira’, de Julio Bressane. (Brasil, 1989)
  • ‘Broadway Danny Rose’, de Woody Allen. (EUA, 1984)
  • ‘Ao Sul do Meu Corpo’, de Paulo César Saraceni. (Brasil, 1982)
  • ‘Santa Sangre’, de Alejandro Jodorowsky. (México, 1989)
  • ‘Faça a Coisa Certa’ (Do The Right Thing), de Spike Lee. (EUA, 1989)
  • ‘O Iluminado’, de Stanley Kubrick. (EUA/Inglaterra, 1980)
  • ‘Corra Que a Polícia Vem Aí!’ (The Naked Gun), de David Zucker. (EUA, 1988)
  • ‘Acta General de Chile’, de Miguel Littin. (Chile, 1986)
  • ‘Conta Comigo’ (Stand By Me), de Rob Reiner. (EUA, 1986)

*A lista foi feita a pedido de Pedro Lovallo para uma pesquisa com diversos críticos e pesquisadores sobre o cinema dos anos 1980.

‘Passion’, de Godard

‘A Felicidade das Coisas’, de Thais Fujinaga

Por Fernando Oriente

Em seu primeiro longa, a cineasta paulistana Thais Fujinaga consegue atingir uma contundente potência realista. A partir de situações dramáticas corriqueiras, o filme apresenta reflexos que remetem à realidade social e econômica do Brasil nos anos 2010, bem como as determinações com que essa realidade afeta a subjetividade de seus personagens. “A Felicidade das Coisas’, dentro de sua evolução narrativa e sua construção discursiva, oferece pontuais arestas para o espectador relacionar o que vê na tela com mundo concreto em que ele próprio vive. A relação, e seu conjunto de mediações, ente o particular e o universal, entre a evolução diegética do discurso fílmico e a totalidade dentro da qual estas relações se dão, compõem subsídios daquilo que Lukács considerava como elementos determinantes para a verdadeira força contida na ficção realista.

O longa acompanha Paula, uma mulher de 40 anos, grávida de sete meses e que passa uma temporada com seus dois filhos e sua mãe na modesta casa de praia da família em Caraguatatuba, litoral norte de São Paulo. O principal objetivo de Paula, durante esses dias, é instalar uma piscina no jardim da casa. Essa tarefa se torna quase uma obsessão para a protagonista, que vê nesse ato de consumo – a piscina – um escape para os problemas de sua rotina. Um dos grandes méritos de Thais Fujinaga é introduzir esses problemas de forma natural e progressiva no interior do cotidiano banal da família em férias, que surge na tela em cenas isoladas, intercaladas por pequenas elipses.

Gradualmente o espectador passa a perceber que a família passa por problemas econômicos, que a relação entre Paula e o marido (que se encontra em São Paulo e não aprece no filme) está distante e fria, que seu filho pré-adolescente sente falta do pai e deseja, cada vez mais, se descolar do núcleo familiar e experimentar a vida por conta própria, bem como a mãe de Paula se mostra ausente e alienada dos problemas da vida filha.

A piscina, e sua trajetória ao longo do filme, assume um papel dramático tanto material quanto simbólico. Ela canaliza os desejos e as contradições que Paula enfrenta em sua vida. Vai de promessa de felicidade e diversão à consumação da impossibilidade de se obter isso. As determinações concretas da situação econômica do país são muito mais determinantes e condicionantes da realidade objetiva em que Paula e sua família estão inseridas do que qualquer desejo subjetivo.

Por meio de uma construção discursiva coesa e uma mise-en-scéne que apreende nas cenas elementos das relações materiais imantes que se dão no interior da realidade concreta de seus personagens, Fujinaga consegue remeter os dramas nucleares de uma família de classe média à totalidade da conjuntura socioeconômica do país. A crise financeira da família faz com que Paula não tenha dinheiro para comprar os materiais básicos para que a piscina seja instalada e, pior ainda, não possa terminar de quitar o valor pago em prestações por essa piscina – devido ao fato que seu marido, em São Paulo, usou esse dinheiro reservado para pagar dívidas mais urgentes.

Thais Fujinaga não concentra todo o discurso fílmico nesses problemas financeiros de Paula, eles simplesmente aparecem recorrentemente na diegese como uma força exteriorizada que vai minando aos poucos a precária estabilidade emocional dessa mulher, uma típica representante da classe média remediada do Brasil, que sente cada vez mais os efeitos das crise do capital que passou a determinar a existência da imensa maioria da população brasileira a partir do inicio da década de 2010, mas que tem suas raízes bem anteriores a este período.  

As cenas diretamente ligadas aos problemas financeiros da família não estão ausentes do filme, elas apenas surgem como sequências de mesmo valor diegético que as demais, e são sempre intercaladas pelos momentos em que o dia a dia corriqueiro dos personagens ocupa a tela. Mas o peso crescente da falta de dinheiro constantemente contamina e cria novas tensões latentes que se incorporam ao cotidiano desses personagens. A construção progressiva das dificuldades econômicas que oprimem Paula surgem em cenas em que a vemos discutindo com os instaladores de piscina, tentando negociar mais barato os materiais para a fixação da piscina no jardim, pedindo mais tempo ao vendedor para quitar as parcelas que deve e conversando com o marido por celular (ou via troca de mensagens) – em que cada uma dessas conversas mostra, por um lado, a falta de dinheiro e as dívidas do casal, e, de outro, como a relação entre eles está apartada e conflituosa.

Outo ponto alto do filme é a forma como a diretora consegue, em todas as cenas do longa, por meio de sua encenação precisa, impregnar as situações dramático-narrativas de um realismo objetivo-imanente – em que percebemos a total naturalidade destas situações e a interação orgânica dos personagens com os ambientes em que estão inseridos. Por outo lado – por meio de olhares, frases esparsas, fragmentos de diálogos ouvidos no extracampo (uma recorrência constante ao longo de todo o discurso fílmico) – o filme expande a atomicidade do cotidiano da família em direção dialética aos elementos externos e totalizantes que determinam uma ameaça ao equilíbrio familiar.

As opções de mise-en-scéne de Thais Fujinaga – como a ótima escolha pela predominância de planos de conjunto e planos de situação (com a câmera afastada à distância média dos personagens e suas ações), intercalados com eventuais closes e planos gerais -, uma abordagem direta e frontal das situações dramáticas, a boa direção de atores, o domínio da evolução dramático-narrativa na construção da enunciação, o compromisso com a materialidade dos personagens e dos espaços, entre outros elementos formais-discursivos muito bem utilizados, deixam claro o talento da diretora para imprimir realismo e densidade em seu filme, bem como, a partir desse realismo, englobar camadas e mais camadas que extrapolam as questões presentes na narrativa.

E não é nenhum clichê afirmar que ‘A Felicidade das Coisas’ é um belo longa de estreia que aponta para um futuro muito promissor para a carreira da cineasta.

Os 30 Melhores Filmes de 2021

Por Fernando Oriente

A lista dos melhores longas de 2021 do Tudo Vai Bem inclui apenas filmes que tiveram sua primeira exibição no mundo em 2021, independentemente de terem sidos lançados no circuito brasileiro ou integrado mostras e festivais no país. Com um número maior de obras “selecionáveis”, a lista conta com 30 filmes na ordem – mais ou menos e até o momento – da minha preferência. Essa maior liberdade na escolha dos títulos faz com que os filmes dessa lista sejam excelentes ou, no mínimo, muito bons.

Do 1º ao 4º são obras-primas (a se confirmar com o tempo e com revisões).  Do 5º ao 18º são filmes excelentes. Os demais são muito bons.

Os 30 melhores filmes de 2021

  1. ‘Drive My Car’, de Ryusuke Hamaguchi. (Japão)
  2. ‘Zeros and Ones’, de Abel Ferrara. (Itália/EUA)
  3. ‘Limbo’, de Soi Cheang. (Hong Kong)
  4. ‘Cry Macho’, de Clint Eastwood (EUA)
  5. ‘Capitu e o Capítulo’, de Julio Bressane (Brasil)
  6. ‘Roda da Fortuna’, de Ryusuke Hamaguchi. (Japão)
  7. ‘Madres Paralelas’, de Pedro Almodóvar. (Espanha)
  8. ‘Memoria’, de Apichatpong Weerasethakul. (Colômbia/Tailândia)
  9. ‘The Card Counter’, de Paul Schrader. (EUA)
  10. ‘Annette’, de Leos Carax. (França/EUA)
  11. ‘In Front of Your Face’, de Hong Sang-soo. (Coréia do Sul)
  12. ‘A Garota e a Aranha’ (The Girl and the Spider), de Ramon Zürcher e Silvan Zürcher. (Suíça)
  13. ‘What do We See When We Look at the Sky?’, de Alexandre Koberidze. (Georgia)
  14. ‘Encontros’, de Hong Sang-soo. (Coréia do Sul)
  15. ‘France’, de Bruno Dumont. (França)
  16. ‘Old – Tempo’, de M. Night Shyamalan. (EUA)
  17. ‘Tre Piani’, de Nanni Moretti. (Itália)
  18.  ‘Benedetta’, de Paul Verhoeven. (França)
  19.  ‘Cena do Crime’, de Pedro Tavares. (Brasil)
  20. ‘Os Primeiros Soldados’, de Rodrigo de Oliveira. (Brasil)
  21.  ‘Ataque dos Cães – The Power of the Dog’, de Jane Campion. (Inglaterra/Nova Zelândia)
  22. ‘Ostinato’, de Paula Gaitán. (Brasil)
  23.  ‘A Vingança É Minha, Todos os Outros Pagam em Dinheiro’, de Edwin. (Indonésia)
  24.  ‘Întregalde’, de Radu Muntean. (Romênia)
  25. ‘Compartment No. 6’, de Juho Kuosmanen. (Finlândia/Rússia)
  26. ‘A Cidade dos Abismos’, de Priscyla Bettim e Renato Coelho. (Brasil)
  27. ‘Madalena’, de Madiano Marcheti. (Brasil)
  28. ‘Azor’, de Andreas Fontana. (Argentina/Suíça)
  29. ‘After Blue’, de Bertrand Mandico. (França)
  30. ‘A Chiara’, de Jonas Carpignano. (Itália)

‘Drive My Car’, de Ryusuke Hamaguchi

10º Olhar de Cinema – críticas e comentários sobre alguns dos destaques da edição 2021 do Festival

Por Fernando Oriente

Os quatro melhores filmes do Festival

‘Capitu e o Capítulo’, de Julio Bressane (Brasil, 2021)

Em seu novo longa, reforçando o que vem fazendo desde os anos 1990, Bressane traz a força da teatralidade da encenação, com toda a construção de cena baseada em planos estáticos em que uma valorização dos tableaux se dá de maneira primorosa pela disposição dos corpos e objetos dentro do quadro e na junção espaço-temporal entre personagens, fragmentos dramáticos e espaços cênicos. Ao mesmo tempo em que Bressane reforça a potência da teatralidade cinematográfica no cinema contemporâneo, o cineasta remete a uma mise en scène do primeiro cinema, especialmente aquela dos filmes europeus dos anos 1910, em que a encenação se dava por meio de uma  mise en cadre da qual os plateaux eram o centro a partir dos quais a ação era construída, com ênfase nos posicionamentos dos atores, seus deslocamentos e distâncias em relação a câmera fixa e a profundidade de campo era explorada como recurso composicional e dramático dentro de ambientes internos. Mas Julio Bressane vai além e faz essas presenças no plano estático reforçarem a materialidade dos corpos e o que eles representam na dramaturgia – suas personas ficcionais emanam de seu próprio ser em cena em relação à potência do décor.

‘Capitu e o Capítulo’ promove uma junção de pequenos instantes de ‘Dom Casmurro’ intercalados com uma expansão do texto machadiano em direção à literatura brasileira dos séculos XIX e XX. Essa junção é promovida pela presença do personagem do narrador, que é ao mesmo tempo Bentinho (já mais velho) e o próprio Machado de Assis, além de uma extensão do próprio Bressane, que se coloca em cena por meio desse narrador-personagem. As reflexões do narrador sobre poetas como Álvares de Azevedo e Junqueira Freire, com direito a leitura de alguns de seus poemas, bem como a citação direta de um ensaio de Lima Barreto, fazem com que Bressane relacione a obra machadiana com o contexto literário que o precedeu e o seguiu. Esses momentos são uma forma do diretor interromper as sequências diretamente extraídas de ‘Dom Casmurro’ e contextualizar o romance com o pensamento literário e dramático que são a fonte da moderna literatura nacional.  

Além disso, Bressane reforça um elemento que vem se utilizando em seu cinema recente, a constante inserção de cenas e seus antigos filmes, criando, dentro de uma obra fechada, uma relação centrífuga com a evolução de seu próprio fazer cinematográfico.

As cenas digressivas do narrador (e os excertos de antigos filmes do diretor) se intercalam  a fragmentos do mais célebre romance de Machado. Nestes, Bressane põe a ênfase na força erótica de Capitu, Sacha e Escobar e no contraste dessa potência erótica do desejo com um quase assexuado Bentinho, mostrado como um homem fraco, frágil e incapaz de romper com sua mesquinha posição moral pequeno burguesa.

Julio Bressane cria um universo cênico de pequenos e belíssimos instantes dramáticos, em que a força do texto falado, da simples presença dos atores em cena e do uso destacado da profundidade de campo em ambientes fechados (assim como de toda a escala de planos dentro do quadro), além do destaque dado aos objetos de cena,  reforçam as sensações dos tipos. Tudo dentro de um processo composicional anti-naturalista, em que a significação das ações e, principalmente, dos desejos, sentimentos e hesitações dos personagens ganham vida por meio de falas declamadas, de instantes de um silêncio espesso, da expressividade dos cenários, de olhares, gestos e expressões, bem como por meio da deslumbrante construção dos tableaux.

E, já que o filme exige uma crítica muito mais extensa, para resumir estes breves comentários em poucas palavras: Bressane nos oferece mais uma obra-prima.

‘A Máquina Infernal’, de Francis Vogner dos Reis (Brasil, 2021)

Francis Vogner dos Reis realiza, em apenas, 29 minutos, um brilhante retrato da situação da classe trabalhadora no Brasil. Mais especificamente o operariado industrial. Algo raro no cinema brasileiro contemporâneo, um filme em que a questão de classe é o centro e a razão da dramaturgia. Entre os inúmeros subtextos presentes em ‘A Máquina Infernal’ temos o colapso da industrialização no país. Esse processo da desindustrialização brasileira, que teve início nos anos 1980 e se agudizou a partir do Plano Real em 1994, marca uma transição da acumulação de capital no país para um tipo de capitalismo dependente rentístico, em que os industrias brasileiros, devido à concorrência de produtos manufaturados estrangeiros – que passam a inundar o mercado nacional após a abertura total da economia do país iniciada no início dos anos 1990 – fecham suas indústrias e passam a viver da especulação financeira, principalmente nos títulos da dívida pública e na renda imobiliária dos antigos galpões e terrenos onde existiam as fábricas. É bom deixar claro que o Brasil que sempre foi um pais dependente, subdesenvolvido e periférico, apesar breves momentos de desenvolvimentismo que nunca foram capazes de tirar o pais de sua posição depende e subdesenvolvida e na qual  classe trabalhadora sempre foi vítima da superexploração da força de trabalho, ao mesmo tempo em que a maioria dos lucros da nossa economia eram exportados para exterior via o envio de remessas de capital acumulado no pais e produzido por nossos trabalhadores.

A participação do capital industrial no PIB do país passa de mais 40% em fins dos anos 1970 para menos de 15% já nos anos seguintes ao Plano Real  – e hoje representa pouco mais de 10%. A nova divisão internacional do trabalho, que fez com que as multinacionais com sede nos países imperialistas transferissem suas plantas para o sudeste asiático e a Índia, bem como a crescente estrangeirização da economia nacional, restringiu o parque industrial brasileiro às transnacionais e a empresas de capital misto, onde a maior parte dos lucros fica na mão de investidores e sócios estrangeiros. Todos os setores da indústria de bens e equipamentos sofreu um enorme encolhimento.

Essa digressão não é meramente ilustrativa, é o cerne, a base material que engendra o discurso de ‘A Máquina infernal’. No filme acompanhamos uma indústria na divisa de São Bernardo com Diadema, na região do ABC paulista, que se encontra em processo de falência – os donos sumiram e uma interventora foi chamada para gerenciar a fábrica nos seus últimos momentos antes do inevitável fechamento de suas atividades. No interior dessa fábrica acompanhamos os poucos operários que restam, trabalhando em meio a máquinas deterioradas ou simplesmente quebradas, sem a mínima segurança para operar esses equipamentos e sofrendo de uma crescente superexploração de suas forças de trabalho, com aumentos da jornada de trabalho, empregos temporários, alguns cumprindo aviso prévio após serem demitidos e todos com seus rebaixados salários atrasados.

Vogner dos Reis compõe de forma precisa os espaços internos dessa fábrica  – ao mesmo tempo que contextualiza a área em seu entorno, com cenas externas de suas ruas e das poucas indústrias que restaram na região. Acompanhamos os deslocamentos dos operários que exercem seus trabalhos de maneira melancólica e resignada, a câmera filma detalhadamente a maquinária deteriorada, passeia pelos espaços intercalando planos fechados nos operários e planos de conjunto em que os mostram integrados aos espaços de trabalho, em curtos diálogos, se deslocando pelos ambientes da indústria ou simplesmente operando as máquinas. O tempo todo a excelente banda sonora introduz sons e ruídos das máquinas ao mesmo tempo em que insere barulhos estranhos; é como se aquelas máquinas estivessem emitindo sons de seu próprio colapso, anunciando a ruína final dessa fábrica.

Em uma das grandes cenas do filme, temos uma assembleia entre os funcionários e a interventora, em que as demandas dos operários por seus salários atrasados, suas queixas pela extensão da jornada são interrompidas pelo conflito entre os próprios trabalhadores. Um deles clama por uma greve com ocupação, enquanto outro o ataca e diz que eles têm que aceitar a situação para não perderem de maneira ainda mais rápida seus empregos. Nessa cena, mais um subtexto aflora dentro do discurso dramático, a fragilidade e a incapacidade de combate da classe trabalhadora, impossibilitada de se unir para lutar por seus direitos. Isso escancara a imensa regressão da consciência de classe que tomou conta dos trabalhadores brasileiros desde os fins dos anos 1980 e principalmente a partir dos anos 1990. Essa perda ou embotamento da consciência de classe se deve, no Brasil, à ação deletéria de sindicatos e centrais sindicais pelegas, ao crescente desemprego e rebaixamento dos salários, as perdas dos  direitos trabalhistas, bem como da ação dos partidos de esquerda, que passaram a abandonar a questão da luta de classes e a barganhar por pequenas causas e por políticas públicas de curto alcance.

O grande achado e uma das mais potentes soluções dramáticas assumidas por Francis Vogner do Reis é abordar essa situação concreta do proletariado industrial brasileiro nos dias hoje por uma chave fantástica carregada de simbologias e significações. Desde o início do filme, temos um crescente tom pesadelo, de horror – como numa das primeiras cenas em que um operário morre ao operar uma máquina. Ao longo do filme, vemos trabalhadores entrarem numa espécie de surto, em que se tornam uma espécie de zumbis, como se fosse extensões mecânicas das próprias máquinas. A maquinaria e a própria fábrica passam agir por conta própria, objetos são atirados nos funcionários, os ruídos se intensificam, sons insuportáveis tomam conta do espaço interno, operários caem no chão em convulsões provocados pelo contato com a maquinaria. Tudo caminha até o desfecho, quando a fábrica mata todos os operários, com exceção da protagonista, que perambula pelos espaços entre os cadáveres de seus colegas de trabalho até ela mesma ser tomada por um surto. Essa situação no interior da planta culmina com uma imagem externa da fábrica sendo demolida.

A indústria falida desmorona e soterra os operários. A crise do capital industrial se materializa na tela pelo próprio desmoronamento da fábrica; o capitalismo industrial desaba matando o operariado superexplorado. Os últimos planos trazem uma espécie de limbo pós destruição, em que vemos a protagonista andando pela indústria e vendo todos aqueles que morreram, desde o primeiro personagem que morre no início do filme, trabalhando normalmente. Surge em cena a figura do proprietário da fábrica – aquele que tinha abandonado e fugido da empresa – e sem mover os lábios ouvimos sua voz dizendo à protagonista que as máquinas não quebrarão mais e ela está dispensada do trabalho. Então, a jovem operária se dirige à saída da fábrica, mas ao abrir a porta, vê uma parede. Não há saída, todos estão encerrados dentro dessa fábrica que não mais existe. O operariado, assassinado pelo capital está encerrado dentro desse espaço de trabalho que não mais existe. É fim dos empregos, dos postos de trabalho, das indústrias do ABC que há quatro décadas atrás representaram o ápice da industrialização brasileira;  a crise final do capital industrial brasileiro.

‘A Máquina Infernal’ une cenas de um realismo cru a elementos de cinema fantástico e mesmo de horror. É a forma composicional que Vogner dos Reis encontra para traduzir a realidade desesperadora da classe operária brasileira hoje, que começou a ser gestada há décadas e encontra seu colapso final nos dias atuaia. O uso dos elementos fantásticos não são mero exercício formal e estético, eles traduzem e ampliam, metaforicamente, a realidade concreta retratada no longa. O fantástico no filme é uma forma de potencializar o realismo crítico com que o diretor constrói seu curta. Um dos grandes filmes do ano.

‘A Cidade dos Abismos”, de Priscyla Bettim e Renato Coelho (Brasil, 2021)

O centro de São Paulo se tornou um mito no cinema, como também na literatura. Essa mitologia em torno de um espaço degradado surgiu a partir dos anos 1960, quando a região central da maior cidade do país iniciou seu processo de deterioração. Até a década de 1950, o centro paulistano era pujante, frequentado pelas classes médias e altas, que ao mesmo tempo continha uma população pauperizada em seus cortiços e pequenos edifícios. mas que não impediam a circulação das classes abastadas em seus bares, cafés, restaurantes, doceiras, cinemas e teatros. A degradação desse espaço alimentou uma nova relação da classe artística com a região central de SP, que no caso do cinema se traduziu no cinema marginal (ou de invenção) e depois nos filmes da Boca do Lixo. A Rua do Triunfo era o local onde se encontravam as produtoras e distribuidoras de filmes e por seus quarteirões andavam cineastas, fotógrafos, roteiristas, montadores, produtores, bem como atrizes e atores que trabalhavam diretamente tanto nos filmes de invenção quanto nos longas da Boca dos anos 1970 e 1980. Isso também acabou. Hoje a Rua do Triunfo não tem mais nenhum vestígio desse mundo cinematográfico, mas existe na mitologia de um cinema incontornável que marcou a cinematografia paulistana.

Em 2021 o centro de São Paulo é habitado por moradores de rua, dependentes de crack, prostitutas, travestis, trabalhadores pobres e pequenos traficantes, ao mesmo tempo em que abriga artistas, poetas, escritores e intelectuais que se recusam abandonar a região e lá ainda moram, seja no Edifício Copam ou nos prédios das Avenidas São Luís e Viera de Carvalho e na região do entrono da Praça da República.

Essa longa introdução é necessária para nos aproximarmos desse ótimo primeiro longa de Priscyla Bettim e Renato Coelho. Em “A Cidade dos Abismos’ o centro de SP é tão personagem quanto os tipos que dentro dele interagem. E o vazio é marca central, esse vazio espacial da região que se transporta para as existências dos personagens.

No longa temos uma pequena narrativa que se desenrola em torno de quatro personagens que habitam a região central de SP – duas travestis, uma restauradora de filmes que trabalha na Cinemateca e um imigrante africano dono de um boteco fuleiro. Uma das travestis é assassinada no bar do africano e os outros três personagens passam a investigar por conta própria os autores desse crime. A grandeza do filme está em não se ater apenas a essa evolução dramática e promover uma mescla de situações alegóricas, que vão desde a entrada em cena de personagens marginais desse tecido urbano degradado do centro paulistano – que surgem na tela como arquétipos, recitam poesias diretamente para a câmera, ou apenas se movem como presenças fantasmáticas dentro desse vazio urbano -, passando por um sonho de uma personagem que é narrado e depois encenado, pela presença fantasmagórica da travesti assassinada que surge em cena perambulando pelas ruas sujas e deterioradas, por um bizarro Papai Noel que no dia de Natal, em plena Cracolândia, troca presentes por pedras de crack e por momentos de puro experimento com imagens – com cenas captadas em super 8 que registram as ruas, calçadas e fachadas de casas e prédios do centro e que são apresentadas em velocidade acelerada e montadas por justaposições e fusões de planos.

A Cidade dos Abismos’ é um filme híbrido, em que a pequena narrativa é constantemente intercalada por experimentos com as texturas da imagem ( o filme todo é captado em película; 16mm na maioria das cenas, super 8 nas sequências mais experimentarias e 35mm em uma única cena em que uma das protagonistas canta ao lado do personagem vivido por Arrigo Barnabé), planos e sequências alegóricos, uma constante inversão entre o colorido e o preto e branco, textos em off que penetram o espaço diegético. A filiação de Bettim e Coelho é o cinema de invenção, o experimental, mas mesmo nesse deleite de imagens e sons que o filme oferece, a dupla de realizadores consegue promover uma perfeita junção entre o alegórico e o discurso dramático centrado na presença desses quatro personagens centrais, seu vazio existencial, as relações de pequenas afeições que surgem entre eles e a fragilidade de suas existências que os conduzem a um desfecho trágico, onde a morte violenta nada representa para a “sociedade”. São vazios existências que ao serem eliminados da forma mais brutal somem da mesma forma como viveram, num limbo existencial. É o centro de São Paulo que abriga ao mesmo tempo que engole e faz desvanecer esses seres.

‘A Cidade dos Abismos’ promove uma verdadeira imersão no tecido urbano do centro de São Paulo, tanto em sua materialidade quanto em sua simbologia. Entre as cenas  alegóricas e experimentais, temos momentos de potente encenação dos dramas dos quatro protagonistas, que são filmados em ângulos fechados – que oferecem uma sensação de aprisionamento espacial e existencial desses personagens -, um registro potente dos espaços cênicos, assim como diálogos lentos, silêncios, deslocamentos por ruas e becos, bem como por uma interação entre esses personagens em que rasgos de afeto e empatia afloram em meio a conversas corriqueiras e o desejo de descobrir os assassinos da travesti. Para completar, temos participações especiais de figuras marcantes da identidade cultural e social da cidade de São Paulo como Arrigo Barnabé, Claudio Willer, Marcelo Drummond e do padre Julio Lancelotti.

O primeiro longa de Bettim e Coelho tem os pés firmes em 2021, mas constantemente se expande em direção a elementos constitutivos do cinema de invenção, do cinema da Boca e de artistas que encarnam a metrópole paulistana em suas próprias presenças. ‘A Cidade dos Afetos’ transborda em suas imagens e sons essa cidade caótica e sua região central e reforça a mitologia do centro paulistano, mas de maneira orgânica e autêntica, onde a visão dos realizadores foge de clichês e preconceitos e retira uma beleza de onde menos se espera, sem mascarar a realidade concreta de um espaço deteriorado e abandonado e das existências que nele sobrevivem.

‘Apenas o Sol’, de Arami Ullón (Paraguai, 2020)

A cineasta paraguaia Arami Ullón consegue promover em seu documentário um registro original do processo de desenraizamento de índios da etnia Ayoreo na região do Chaco no Paraguai. Todo este processo se deve primeiro a descoberta do que podemos chamar de protagonista, o indígena Sobode Chiqueño, que há anos grava em fitas cassete os depoimentos de membros de sua etnia hoje confinados a reservas em uma região seca e distante das florestas onde habitavam antes do contato com os brancos; florestas estas que viraram fazendas, propriedades privadas para gerar lucro pelas atividades agrícolas, bem como pela renda da terra.  

O grande mérito do filme está em centrar esses depoimentos, que Ullón registra enquanto Chiqueño os grava, no aspecto da religião, de como a catequese – primeiro católica, depois evangélica – fez com que esses indígenas, na maioria já velhos, tenham abandonado e renegado suas tradições e crenças religiosas e se convertido ao cristianismo e seus dogmas. Ao mesmo tempo o filme intercala os depoimentos com  uma captação primorosa de imagens dos espaços onde vivem os indígenas e mostra a integração deles nesse ambiente áspero.

Outro elemento de força desse resgate pela fala do processo de desenraizamento dos Ayoreo são os depoimentos que o próprio Chiqueño faz para seu gravador – e que a diretora registra da mesma maneira horizontal com que filma cada fala dos indígenas -, em que comenta como ele, após ter se convertido ao cristianismo, passou a refletir como este processo o afastou de suas raízes culturais e simbólicas e o fez desejar registrar as experiências de seus pares, ao mesmo tempo em que tentava um resgate das antigas tradições de seu povo e que, pelos depoimentos e imagens, vemos que estão condenadas a desaparecer.

Mas o elemento religioso não é o único. Em um dos grandes momentos do longa, um índio idoso comenta como, após ter contato com os brancos, passou a desejar ser como eles e ter o que eles tinham. Só que ele pensou que poderia ter tudo isso de graça e descobriu que no universo do colonizador, tudo tem seu preço, um valor dinheiro desconhecido pelas vivências indígenas. Daí surge a questão do trabalho, dos baixíssimos salários pagos aos índios em trabalhos temporários e subempregos.

Embora seja centrado na questão religiosa, ‘Apenas o Sol’, também traz depoimentos em que indígenas relatam as chacinas promovidas pelos brancos em que seus familiares foram assassinados; traz a questão das doenças desconhecidas na comunidade e que, trazidas pelo colonizador, mataram muitos membros da tribo, além de tratar da questão da introdução das mercadorias e sua relação com o dinheiro. Um documentário de extrema profundidade no mergulho nas raízes desses indígenas, numa contextualização ampla da totalidade dos processos de colonização que os levaram a um inescapável desenraizamento.

Outros destaques do 10º Olhar de Cinema

Um dos pontos altos da programação do festival em 2021 foi a retrospectiva de todos os filmes do palestino Kamal Aljafari. São longas e curtas que dialogam constantemente uns com os outros e mostram que na evolução da obra de Aljafari, os elementos centrais de sua obra são sempre a questão da tragédia do povo palestino, desde a diáspora do Nakba em 1948, que, fruto do ataque militar que os israelenses promoveram às cidades palestinas, forçou o êxodo de centenas de milhares de árabes de suas casas, além do assassinato de milhares deles. E como esse processo de expulsão e segregação continua de forma ininterrupta até os dias de hoje.

Kamal Aljafari detêm sua câmera nas casas deterioradas e em ruínas em que vivem os palestinos, nas ruas de terra, nos entulhos que se intercalam a essas precárias residências dentro dos guetos em que foram transformadas as cidades de Jaffa e Ramle, incrustradas na periferia de Telavive e de outras cidades ocupadas por Israel. Sua câmera também registra esses árabes dentro destes espaços (interiores e exteriores), na maioria das vezes em silêncio, em pequenas ações banais do cotidiano ou em diálogos que vão do corriqueiro às lembranças das violências de que foram vítimas pelas mãos de Israel e seus sionistas.

Dos depoimentos melancólicos e da prostração resignada de seus parentes em O Telhado (2006), que também marcam a dramaturgia e os personagens de seu único longa ficcional, Porto da Memória (2009), Aljafari passa a trabalhar em seus dois filmes seguintes com imagens de arquivo de diversas fontes. Em Recordação (2015) acompanhamos, pela montagem de inúmeras cenas registradas em diferentes períodos históricos, a deterioração material da cidade de Jaffa, suas casas e ruas. Já em Um Verão Incomum (2020) o diretor se utiliza de imagens de uma câmera de segurança instalada por seu pai na casa da família captadas ao longo de vários dias, em que um único enquadramento é trabalhado por Aljafari para promover um registro de um fragmentos de rua e seus espaços adjacente onde vemos diversas pessoas passarem diante da câmera, intercaladas por cartelas em que o texto contextualiza quem são as pessoas conhecidas pelo diretor, bem como comenta sobre tipos desconhecidos dele e as ações que os vemos fazer diante da câmera. Nesse recorte espacial minúsculo, Aljafari consegue um registro poderoso do dia a dia de palestinos e meio ao gueto em que foram confinado. O cinema de Kamal Aljafari é notável.

Para concluir, destaco outros dois filmes muito bons que integraram a seleção do 10º Olhar. Zinder, longa da diretora do Níger Aicha Macky, em que a cineasta faz um mergulho pessoal no bairro marginal e paupérrimo de Kara Kara, em sua cidade natal da de Zinder. Kara Kara é habitado por gangues, prostitutas, contrabandistas de gasolina, bem como por trabalhadores que vivem de subempregos e com salários baixíssimos.

O longa é composto por uma notável apreensão dos ambientes do bairro, bem como de seus habitantes – com destaque para membros de uma gangue, uma contrabandista e um ex-membro de gangue que trabalha como mototaxista. Esta imersão em Kara Kara é ampliada pela inserção no discurso do filme de questões de base que promovem a miséria e a violência do local. A falta de emprego  e ausência do Estado em promover o mínimo para a comunidade força a adesão de jovens da região tanto às gangues quanto a grupos terroristas e, no caso das mulheres e meninas adolescentes, à prostituição. Essa base socioeconômica também faz com que os habitantes do bairro tenham que sobreviver por meio de trabalhos por conta própria – como a venda de gasolina contrabandeada – ou por empregos temporários com salários rebaixados e uma constante superexploração de suas forças de trabalho, como no caso do trabalho em pedreiras da região. Um documentário de rara potência e de uma contextualização primorosa de um ambiente, seus habitantes e as relações materiais que determinam e condicionam suas vidas.

Já o documentário Estilhaços, da cineasta argentina Natalia Garayalde, faz uso de imagens captadas na infância da diretora, nos primeiros anos da década de 1990 – por meio de uma câmera de vídeo VHS da família de Garayalde – e montadas ao lado de imagens de arquivo da época e poucas cenas que diretora registrou, já nos anos 2010, em seu retorno à sua cidade de Río Tercero, na região de Córdoba. O filme gira em torno de um acidente que arrasou a cidade de Río Tercero, a explosão de uma fábrica militar de munições, em 1994.

Natalia Garayalde, então uma criança, filmou ela mesma, na câmera de vídeo de sua família, cenas que registram a destruição da cidade após a explosão. A força do filme vem da junção na montagem dessas cenas com outras captadas pela diretora criança e seus irmãos, em que vemos o cotidiano da família antes do acidente. O conflito entre o pacato e alegre dia a dia da família antes da explosão e a força das imagens caseiras de Río Tercero arrasada após o acidente nos dão um contraste pessoal e uma forte impressão do que essa tragédia significou para a vida de toda sua família. Ao mesmo tempo, as cenas feitas por meio de uma câmera caseira dão um tom extremamente particular e orgânico às imagens e ampliam a sensação subjetiva do olhar da diretora diante da tragédia.

As imagens não captadas pela câmera da família, as de arquivo e as cenas feitas por Garayalde nos anos 2010, bem como suas falas em off, nos jogam da visão pessoal e íntima das imagens caseiras antes e depois do acidente à contextualização do que foi essa tragédia: uma explosão proposital para tentar esconder o contrabando que o governo argentino de Carlos Menen  fazia dessas munições com a Croácia em plena Guerra dos Balcãs.

‘Estilhaços’ é um documentário que consegue o grande mérito de tratar de um evento traumático da história argentina por meio de uma extrema pessoalidade e presença da realizadora no meio onde a tragédia ocorreu (bem como ela se materializa nas imagens caseiras que registrou enquanto criança) e Garayalde mostra grande talento na precisa utilização e escolhas das imagens, indo da intimidade de sua família à contextualização geral dos acidentes, bem como retoma duas décadas depois os efeitos da explosão, como o câncer que matou sua irmã e que também acometeu seu pai – câncer esse fruto da contaminação química provocada pelas explosões.

Comentei aqui os filmes que assisti e gostei, os que achei ruim ou apenas medianos foram deixados de fora. Também não tive como assistir à alguns títulos que foram elogiados por colegas críticos que tenho grande consideração, como o longa iraniano Crime Culposo e o argentino Esqui. Infelizmente não consegui assistir aos novos filmes de dois realizadores brasileiros que gosto muito, O Dia da Posse, de Allan Ribeiro e O Bom Cinema, de Eugênio Puppo.

Os 20 Melhores Filmes dos anos 1990 (+24 menções)

Por Fernando Oriente

Aqui está a lista com meus 20 filmes de longa-metragem favoritos da década de 1990 (+ 22 filmes em menção). Aproveito para fazer uma nova publicação aqui no blog, já que minhas pesquisas e trabalhos têm me impedido de escrever mais para esse espaço. Em breve retornarei com a publicação de novas críticas, artigos e ensaios. Agora a lista dos anos 1990:

  1. “Nouvelle Vague”, de Jean-Luc Godard (França, 1990)
  2. “Van Gogh”, de Maurice Pialat (França, 1991)
  3. “Um Dia Quente de Verão”, de Edward Yang (Taiwan, 1991)
  4. “Vive L’Amour”, de Tsai Ming Liang (Taiwan, 1994)
  5. “Carlito’s Way” (O Pagamento Final), de Brian De Palma (EUA, 1993)
  6. “A Bela Intrigante” (La Belle Noiseuse), de Jacques Rivette (França, 1991)
  7. “Blackout”, de Abel Ferrara. (EUA, 1997)
  8. “O Vale Abraão”, de Manoel de Oliveira (Portugal, 1993)
  9. “Satantango”, de Béla Tarr (Hungria, 1994)
  10. “Crash”, de David Cronenberg (Canadá, 1996)
  11. “Beau Travail”, de Claire Denis (França, 1999)
  12. “Drácula, de Bram Stoker”, de Francis Ford Coppola (EUA, 1992)
  13. E a Vida ContinuaA Vida e Nada Mais “, de Abbas Kiarostami (Irã, 1992)
  14. “A Comédia de Deus”, de João César Monteiro (Portugal, 1995)
  15. “Antígona”, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (Alemanha, 1992)
  16. “A Enguia”, de Shohei Imamura (Japão, 1997)
  17. “A Perfect World” (Um Mundo Perfeito), de Clint Eastwood (EUA, 1993)
  18. “La Naissance de L’Amour”, de Philippe Garrel (França, 1992)
  19. “Alma Corsária”, de Carlos Reichenbach (Brasil, 1993)
  20.  “Showgirls”, de Paul Verhoeven (EUA, 1995)

+ 24 Menções – Filmes que poderiam estar entre os 20

  • “Céline”, de Jean-Claude Brisseau (França,1992)
  • “Conto de Verão”, de Eric Rhomer (França, 1996)
  • “La Cérémonie” (Mulheres Diabólicas), de Claude Chabrol (França, 1995)
  • “A Estrada Perdida” (Lost Highway) de David Lynch (EUA, 1997)
  • “Hana-Bi”, de Takeshi Kitano (Japão, 1997)
  • “Caro Diário”, de Nanni Moretti (Itália, 1993)
  • “Flores de Xangai”, de Hou Hsiao-Hsien (Taiwan, 1998)
  • “Ossos”, de Pedro Costa (Portugal, 1997)
  • A Garota da Fábrica de Caixa de Fósforos“, de Aki Kaurismäki. (Finlândia, 1990)
  • “Tudo É Brasil”, de Rogério Sganzerla (Brasil, 1997)
  • “Do Leste”, de Chantal Akerman (Bélgica/França, 1993)
  • “O Viajante”, de Paulo César Saraceni (Brasil, 1998)
  • “Heat” (Fogo Contra Fogo), de Michael Mann (EUA, 1995)
  • “São Gerônimo”, de Júlio Bressane (Brasil, 1999)
  • “Vampiros”, de John Carpenter (EUA, 1998)
  • “Cure”, de Kiyoshi Kurosawa (Japão, 1997)
  • “Los Náufragos”, de Miguel Littin (Chile, 1994)
  • “Casino”, de Martin Scorsese (EUA, 1995)
  • “A Carne”, de Marco Ferreri (Itália, 1991)
  • “O Vigilante”,  de Ozualdo Candeias (Brasil, 1992)
  • “Les Amants du Pont-Neuf”,  de Leos Carax (França, 1991)
  • “Tiros da Broadway”, de Woody Allen (EUA, 1994)
  • “A Viagem”, de Fernando Solanas (Argentina, 1992)
  • “Audition”, de Takashi Miike (Japão, 1999)

*A lista foi feita a pedido de Pedro Lovallo para uma pesquisa com diversos críticos sobre o cinema dos anos 1990.

**Decidi colocar apenas um filme por diretor, para tornar a lista mais ampla na variedade de filmes.

‘Nouvelle Vague’, de Jean-Luc Godard

Os 20 melhores filmes de 2020

Por Fernando Oriente

Em um ano absurdo – com salas de cinema fechadas, eventos cinematográficos cancelados, festivais e mostras acontecendo online e filmes lançados direto em streaming ou VOD – a lista de melhores do ano do Tudo Vai Bem sofreu mudanças radicais na seleção dos títulos. Em primeiro lugar, não tive como assistir a alguns títulos lançados ao longo do ano que me parecem muito bons, por outro lado a oferta de filmes online ou em streaming aumentou como nunca. Resumindo, a lista dos melhores de 2020 do blog inclui filmes lançados no cinema – antes e depois do fechamento total das salas – e títulos vistos nos mais variados suportes, do streaming à TV.

Um quesito foi fundamental, incluí apenas filmes que tiveram sua primeira exibição no mundo em 2020 e alguns em 2019. Com um número maior de obras “selecionáveis”, a lista conta com 20 filmes na ordem – mais ou menos e até o momento – da minha preferência. Essa maior liberdade na escolha dos títulos faz com que os filmes dessa lista sejam excelentes ou, no mínimo, muito bons.

‘Vitalina Varela’, de Pedro Costa, só não está em primeiro lugar porque assisti em 2019 em uma sessão presencial em Belo Horizonte programada pela Zeta Filmes, que é a distribuidora do filme no Brasil. Essa obra-prima, último longa de Costa, foi exibida online ao longo de 2020 no país, dentro do Indie Festival e em outras ocasiões especiais.

Os 20 melhores filmes de 2020

  1. ‘Dias – Days’, de Tsai Ming Liang. (Taiwan)
  2. ‘The Woman Who Ran’ de Hong Sang-soo. (Coréia do Sul)
  3. ‘Liberté’, de Albert Serra. (França/Alemanha)
  4. ‘O Ano do Descobrimento’, de Luis López Carrasco. (Espanha)
  5. ‘Luz  nos Trópicos’, de Paula Gaitán. (Brasil)
  6. ‘O Caso Richard Jewell’, de Clint Eastwood. (EUA)
  7. ‘City Hall’, de Frederick Wiseman. (EUA)
  8. ‘Le Sel des Larmes – O Sal das Lágrimas’, de Philippe Garrel. (França)
  9. ‘Lua Vermelha’, de Lois Patiño. (Espanha)
  10. ‘Os Sonâmbulos’, de Tiago Mata Machado. (Brasil)
  11. ‘First Cow’,  de Kelly Reichardt. (EUA)
  12. ‘Fourteen’, de Dan Sallitt. (EUA)
  13. ‘Responsabilidade Empresarial’, de Jonathan Perel. (Argentina)
  14. ‘Retrato de Uma Jovem Em Chamas’, de Céline Sciamma. (França)
  15. ‘Los Conductos’, de Camilo Restrepo. (Colômbia)
  16. ‘Sibéria’, de Abel Ferrara. (Itália)
  17. ‘Nariz Sangrando, Bolsos Vazios’, de Bill Ross IV e Turner Ross. (EUA)
  18. ‘Canto dos Ossos’, de Jorge Polo e Petrus de Bairros. (Brasil)
  19. ‘Não Haverá Mais Noite’, de Éléonore Weber. (França)
  20. ‘Yãmiyhex – As Mulheres-Espírito’, de Sueli Maxakali e Isael Maxakali. (Brasil)

‘Dias – Days’, de Tsai Ming Liang

Top 10 Brian De Palma – meus (11) filmes preferidos desse gênio

Por Fernando Oriente

Segue a lista dos meus 11 filmes preferidos de Brian De Palma. O onze é por causa do empate de dois longas na primeira posição. Esse é o primeiro top 10 de um cineasta que publico (me sinto aqui meio como meu amigo Sérgio Alpendre e suas constantes e incríveis listas dos 10 mais de seus cineastas favoritos). Brian De Palma é o melhor cineasta americano surgido nos últimos 50 anos (talvez ao lado de Abel Ferrara e Michael Cimino) e um dos dez melhores realizadores da história do cinema mundial.

Segue a relação, por ordem de preferência, dos meus filmes favoritos de De Palma:

  1. ‘O Pagamento Final’ (Carlito’s Way), 1993 / ‘Síndrome de Caim’ (Raising Cain),  1992
  2. ‘Blow Out – Um Tiro na Noite’ (Blow Out), 1981
  3. ‘Carrie’ (Idem), 1976
  4. ‘Trágica Obsessão’ (Obsession), 1976
  5. ‘Vestida para Matar’ (Dressed to Kill), 1980
  6. ‘Femme Fatale’ (Idem), 2002
  7. ‘Dublê de Corpo’ (Body Double), 1984
  8. ‘Missão: Impossível’ (Mission: Impossible), 1996
  9. ‘A Fogueira das Vaidades’ (Bonfire of the Vanities), 1990
  10. ‘Redacted – Guerra Sem Cortes (Redacted), 2007

Nessa lista só constam obras-primas. E alguns filmes do De Palam, por pouco, não entraram entre esses 11 preferidos. São eles: ‘Olhos de Serpente’ (Snake Eyes), 1998, ‘A Fúria’ (The Fury), 1978, ‘Irmãs Diabólicas’ (Sisters), 1972, ‘Pecados Guerra’ (Casualties of War), 1989, ‘Passion’, (Idem), 2012 e ‘Os Intocáveis’(The Untouchables), 1987. Isso sem contar que alguns outros longas realizados por ele, mesmo não tendo o nível desses que já citei, também são ótimos. Afinal de contas, se trata de Brian De Palma.

‘O Pagamento Final – Carlito’s Way’

9º Olhar de Cinema: Breves (e outros não tão breves) comentários sobre alguns dos filmes exibidos na edição online de 2020

‘Luz nos Trópicos’, de Paula Gaitán

O longa de Paula atinge e supera toda a enorme ambição do projeto. Só se pode realmente escrever algo sólido sobre esse filme único se a ele se retornar. Por aqui, apenas algumas observações.

Impressiona a liberdade da câmera da diretora, que explora todas as possibilidades indiciais da imagem. Imagens que se pautam e constroem numa observação sensual, sensorial e poética dos espaços (da natureza viva  e quente da região pantaneira do Xingu aos espaços urbanos de concreto, aço, asfalto e vidro de Nova Iorque, bem como ambientes naturais gelados de rios, lagos e bosques no interior dos EUA).

A liberdade discursiva do filme se desdobra constantemente, seguindo os fluxos das águas dos rios que cruzam o continente americano, desde o frio estadunidense ao calor dos trópicos do Xingu. A câmera da Paula não se impõem limites ou regras, registra tudo de todas as formas e sempre em função da luz – dos espaços abertos onde personagens transitam aos detalhes de corpos, objetos, plantas, águas, animais, ruas, casas e prédios. Natureza e civilização.

A questão do pertencimento aos espaços e à natureza em que os personagens (europeus, estadunidenses, mestiços brasileiros, indígenas) se encontram e na qual se fundem, se perdem ou se encontram é central na relação que diretora constrói entre os corpos e os ambientes que acolhem esses sujeitos . Só as comunidades indígenas apresentam uma real comunhão entre seus seres com a Natureza onde vivem.

Os rios que conduzem sujeitos desterrados a diferentes locais geográficos são os mesmos rios que ligam diferentes tempos históricos, diferentes povos, diferentes culturas. A transitoriedade do ser humano em constante contraste com a continuidade e a permanência da Natureza.

Os dois fios narrativos que conduzem a primeira metade do filme são interrompidos, quando um personagem (presente na segunda narrativa: a expedição de europeus à região do Pantanal no século XIX) atravessa o tempo e se funde ao presente dos dias de hoje no qual retornou o desterrado em busca de sua ancestralidade indígena, personagem da primeira narrativa que abre ‘Luz nos Trópicos’.

A segunda metade do longa é um exercício brilhante de montagem livre que paralelamente intercala registros de personagens deslocados e em permanente movimento na metrópole americana e nos espaços de natureza gelada do hemisfério norte com cenas do Pantanal, de comunidades indígenas do Xingu, bem como introduz cenas alegóricas e situações oníricas.

Distintos registros – digital, super 8, 16mm, fotografias, pinturas, desenhos e imagens de arquivo (cenas do primeiro longa de Paula Gaitán, ‘Uaká’, filmado no Xingu em 1987) – são intercalados com textos em voz over, em diferentes idiomas, que penetram a cena e ampliam seu espalho diegético-temporal.

A montagem da banda sonora é tão potente quanto as imagens – sons, ruídos, vozes, textos, cantos e música que constantemente dialogam e interagem dialeticamente com o campo imagético e remetem ao enorme extracampo que o filme não para, em momento algum, de tensionar.

‘Luz nos Trópicos’ é um filme que se dá ao olhar e à escuta como matéria heterogênea, com camadas e mais camadas de sobreposições espaciais, temporais, visuais e sonoras. Mas, ao mesmo tempo, é um longa em que o fazer cinema, o construir do cinemático como processo criador está presente em cada plano e vai além do filme após o termino da projeção – uma constante presença do cinema como processo, como devir imagem-som que se dá no filme como matéria e se prolonga no espectador durante o ato de assistir e depois como memória ativa daquilo que foi visto e ouvido.

Um filme que usa todas as possibilidades do cinema para criar uma experiência inclassificável e incontornável de imagens e sons belíssimos e alternâncias constantes – espaciais, temporais e materiais – de ritmo e fruição. Mais um filme extraordinário de Paula Gaitán.

‘Los Conductos’, de Camilo Restrepo

O primeiro longa do colombiano Restrepo, filmado em 16mm, é um filme impressionante, desconcertante, que desestabiliza, provoca e instiga o olhar a cada cena.

Uma construção formal e discursiva que penetra a realidade colombiana pelas fissuras, pelo que não é dado de imediato, pelo que que está na imagem e por tudo o que está além das imagens – em tudo aquilo que essas imagens são incapazes de dar e representar.

Uma força impressionante surge dos cortes secos, que unem planos sintéticos de registros realistas que materializam as ações na superfície da tela – achatando sempre a profundidade de campo e trazendo, por meio de fragmentos, uma recriação direta e seca da  realidade dos marginalizados, explorados e excluídos que vivem nos cantos, nas periferias e nos escombros de uma Medelín caótica.

Mas o registro realista é insuficiente para o painel que Restrepo quer criar do cotidiano colombiano, por isso chega um momento em que o filme abandona o realismo e passa a sequências alegóricas – num misto entre o onírico e o simbólico que representam e ultrapassam a realidade dada. Essas cenas também se dão em planos curtos unidos pelos mesmos potentes cortes secos. O filme todo é pontuado pela narração em off dos dois personagens centrais e em suas falas, lembranças e relatos estão presentes tanto os comentários diretos sobre o real recriado nas imagens que compõem a maior parte do filme, quanto as simbologias e metáforas presentes nas sequências alegóricas finais.

Todo esse processo de construção híbrido e aberto do discurso de ‘Los Conductos’ interagem de maneira sensorial e disruptiva com o espectador e projeta uma percepção de um universo que se dá nas imagens mas que vai muito além delas.

Um dos grandes filmes do ano.

‘O Ano do Descobrimento’, de Luis López Carrasco

O filme, do cineasta espanhol Carrasco, tem como tema central o Trabalho. Coisa rara no cinema de hoje.

Toda a impressionante construção do discurso do longa é baseada nas falas, seja nos diálogos, seja nos depoimentos. Um painel amplo sobre as transformações impostas à classe trabalhadora nos últimos 45 anos. A perda da estabilidade, o crescimento vertiginoso do desemprego e dos subempregos, a intensificação da exploração do trabalho vivo. A sujeição completa da Espanha ao poder central da União Europeia, com a Alemanha (e seus aliados mais fortes como a França) comandando os destinos de toda nação espanhola.

O quadro dividido ao meio em duas janelas simultâneas, uma decisão formal poderosa que amplifica a sensação de ruptura do tecido social e torna ainda mais forte o sentimento de fratura dos trabalhadores.

Um registro que busca resumir a totalidade e a amplitude do avanço do liberalismo econômico na Europa e como isso afetou e afeta cada vez mais a classe trabalhadora espanhola (assim como da maioria dos países europeus) gerando a ampliação da perda de estabilidade no trabalho, o crescimento vertiginoso do desemprego e dos subempregos.

O filme dá voz aos jovens, aos velhos e nessa mistura da resignação da juventude se contrapõe o sentimento de melancolia e de derrota dos mais velhos que lutaram contra o franquismo e combateram contra os desmontes do setor industrial na região da cidade da Cartagena.

Uma felicíssima escolha do ano de 1992 como divisor de águas na luta operária – ano em que em que as últimas grandes manifestações de trabalhadores unidos e com consciência de classe tomaram as ruas de Cartagena por centenas de dia, enfrentaram a polícia e queimaram a Assembleia Legislativa da cidade.

Mesmo ano em que a Espanha tentava se vender ao mundo como moderna e globalizada, sediando os Jogos Olímpicos de Barcelona e a Expo Sevilha – para comemorar os 500 anos do “descobrimento” da América.

Todos os planos são fechados, onde o rosto das pessoas filmadas saltam à superfície da tela e ampliam a força de suas falas ou reverberam as suas expressões e sentimentos enquanto participam dos diálogos, escutam ou simplesmente se mantém calados em contemplação. Juntam-se a isso imagens de arquivo das manifestações de 1992 e trechos de telejornais e propagandas de TV.

Toda a ação se passa dentro de um bar, café e restaurante e dentro de espaço extremamente restrito todo um universo de questões do trabalho, da economia, da política, da consciência de classe, os ecos do passado franquista, da luta contra o fascismo, da resistência dos trabalhadores no início dos anos 1990 e do desmonte da segurança do trabalho convivem em constante dialética.

Escrevo no calor do momento, como alguém que acaba de passar pela experiência fantástica de assistir a um longa dessa magnitude. Muito mais pode ser dito sobre essa obra fundamental, mas aqui me falta espaço;

Para resumir: ‘O Ano do Descobrimento’ é um filme imenso.

‘Responsabilidade Empresarial’, de Jonathan Perel

O ótimo documentário é fundamental para todos nós latino-americanos. O longa do diretor argentino expõe enfaticamente (e usando excelentes escolhas formais e narrativas) a responsabilidade e a parceria dos setores empresarias (nacionais e multinacionais) na ditadura empresarial-militar na Argentina dos anos 1970-80, algo que ocorreu da mesma forma em nosso continente ao longo do século XX e mantêm muitas sequelas nos dias atuais em nossos países.

O filme se torna ainda melhor para quem leu o fundamental livro de René Dreifuss, “1964 A Conquista do Estado”, que retrata de maneira primorosa as ligações do setor empresarial (nacional e multinacional) associado ao imperialismo estadunidense no golpe de 1964 no Brasil. O Brasil reflete a Argentina e vice e versa.

‘A Metamorfose dos Pássaros’, de Catarina Vasconcelos

O primeiro longa da diretora portuguesa é um belíssimo exercício da fabulação da memória em imagens e textos. As lembranças da vida da família de Catarina Vasconcelos são encenadas e narradas por vozes em off. Desde o casamento de seus avós até os dias de hoje, tudo é rememorado e fabulado em cenas que exploram a poética dos planos fixos, em tableaux onde circulam personagens do passado e do presente, em que pequenos gestos são filmados em planos fechados, ressaltando os afetos que cada gesto contém. Um filme em que a presença da morte e da vida, do nascimento e da finitude são constantemente comparadas à Natureza. A figura da mãe se materializa na natureza, nas plantas. A relação dos seres humanos é refratada na terra, no mar e no céu; nas árvores, folhas e flores – por isso as constantes imagens dessa natureza entram como espaço portador das recordações daquilo que foi sentido, da dor da perda daqueles que se foram; os afetos que deixaram marcas nas pessoas se transportam, como representação, para a materialidade das plantas, das águas, das montanhas e do céu – tudo o que está ao lado e envolve os personagens como espaço sensorial e táctil, mas que vai além da existência dos sujeitos.

A casa dos avós como ambiente vivo, por onde circulam personagens em seu passado, aqueles que já morreram e os que cresceram e envelheceram, local em que o tempo se estende do passado ao presente, na presença dos objetos, na luz que penetra e moldura os ambientes dessa casa-personagem recipiente da memória e da passagem do tempo.

O filme perde parte da força na segunda metadade, quando Catarina abusa das imagens da Natureza e do excesso de cálculo para torná-las sempre belas. Esse mecanismo optado pela direta atravanca o fluxo do filme, que se engessa demais numa forma muito calculada de potencializar o esplendor visual do que ela põe na tela. E as próprias palavras narradas também perdem sua força, no choque com o excesso de beleza calculada. Catarina Vasconcelos recupera-se na parte final, quando volta a inserir os tipos humanos e a casa de seus avós em cena, momentos em que os textos em off acompanham esse crescimento do discurso no longa.

‘A Metamorfose dos Pássaros’ oferece aquilo que pode ser classificado como cinema de poesia, onde a memória se materializa nas cenas recriadas de lembranças fragmentadas, nas vozes que invadem os planos para narrar o que se passou, ou o que se imagina que aconteceu. Mas o filme trata a memória como recriação, em que fatos que ocorreram são apenas fiapos de lembranças, em que tudo o que não pode ser lembrado é inventado. A memória como fabulação e invenção do passado. Lembrar é um constante fabular, é recriação ficcional de um passado impossível de ser percebido e contido como matéria dada, em que muito do que se perdeu é idealizado, para que o que resta de verdade desse passado seja ampliado em afetos fabulares. E Catarina Vasconcelos traz um caleidoscópio de lembranças e as condensa em uma sequência de livre fruição de imagens-metáfora, imagens-representação, imagens-alegoria, imagens-fragmento. Todas mediadas pelos constantes textos em off, nas diferentes vozes que se relacionam com tudo que se dá plano e se estendem para além do quadro. Um belo longa de estreia.

‘Pajeú’, de Pedro Diógenes

‘Pajeú e mais um ótimo filme de Pedro Diógenes, que já se consolidou como um dos melhores realizadores do Brasil em uma década de trabalho, desde seu início de carreira dentro do coletivo Alumbramento.

O longa funde uma narrativa ficcional com diversas intromissões: documentais, fantásticas ou simbólicas que tratam tanto da cidade de Fortaleza como personagem em constante mutação como do microcosmos da protagonista.

A professora primaria Maristela, em meio a uma crise de ansiedade e angústia que a faz se isolar cada vez mais dos amigos, torna-se obcecada pelo riacho Pajeú, que corta a cidade de Fortaleza e hoje e se encontra canalizado e soterrado, correndo pelos subterrâneos da cidade e deixando-se ver em pequenos pedaços em diferentes pontos da capital cearense. Poluído e constantemente alterado se seu curso natural, o riacho sobrevive nas entranhas desse corpo urbano em expansão.

Maristela passa a ter pesadelos com o Pajeú, que se transforma, em seus sonhos, em um monstro de lixo e poluição. A ficção do filme passa a acompanhar sua protagonista numa jornada em que ela tenta percorrer o curso desse riacho. Nessa marcha ela cruza grande parte da cidade, que vai se revelando ao filme em seus espaços ocultos, em seus fragmentos e suas brechas. Ela passa a se encontrar com pessoas reais –  a ficção é invadida e partilhada na sua construção discursiva com os registros documentais. Esses desconhecidos, habitantes anônimos de uma cidade enorme,  falam sobre o riacho e os efeitos negativos de sua canalização para que mora ou trabalha próximo ao seu curso subterrâneo.

A curiosidade e a obsessão da personagem ficcional faz com que ela recuse, dentro do corpo do filme, a ficar presa ou limitada à ficção e a força a interagir de maneira cada mais documental com tipos reais dentro da cidade real. Essa nova evolução discursiva do filme conduz Maristela a se encontrar com pesquisadores reais, que estudam o Pajeú e as transformações em seu curso desde a fundação de Fortaleza no século XVII, bem com a leva a entrevistar, aleatoriamente, pessoas numa praia, que começam a falar sobre seu (des)conhecimento sobre riacho e, então, passam a responder questões existências que a personagem Maristela faz a elas (que servem como auxílio a suas próprias angústias subjetivas – dentro da ficção). A partir desse momento, ela passa a agir como se fosse uma entrevistadora de um documentário. Nesse trecho das entrevistas na praia, ‘Pajeú’ remete à ‘Crônica de um Verão’, documentário de Chris Marker e Edgard Morin, lançado em 1960. Nesse filme, Marker e Morin interpelam e entrevistam pessoas que passam nas ruas de Paris e lhes fazem perguntas existenciais, como “você é feliz?”

Mas o longa de Diógenes não é nada esquemático, a mistura documentário/ficção nunca é explicita ou fácil de se definir; é sempre questionada e expandida, invadida por outras formas de representação. A ficção realista, intercalada com os momentos documentais, é também interpelada por sequências fantásticas (os pesadelos e delírios de Maristela com o riacho) ou por cenas catárticas (como passagem no bar de karaokê). O percurso ficcional e documental de Maristela no desenrolar do filme desvelam tanto as entranhas e mutações de uma cidade do tamanho de Fortaleza como o íntimo da protagonista, seus medos, angústias, esperanças e incertezas. Ao longo de tudo isso, o discurso em construção de ‘Pajeú’ introduz as relações de Maristela com as pessoas próximas que conhece bem (personas ficcionais) e com os desconhecidos (os tipos “reais”) que encontra em sua trajetória de tentar descobrir, não apenas o curso do riacho canalizado Pajeú, mas também sobre ela mesma e seu estar no mundo.

Um belíssimo exercício de cinema que usa e abusa de tensionamentos no dispositivo.

‘O Índio Cor de Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels’, de Tiago Carvalho 

Um trabalho excepcional de montagem, tanto de som quanto de imagem. Um registro de ruínas, resíduos e rastros da história do nosso país, que se projetam e ecoam de maneira intensa nos dias hoje.

Belíssimo.

‘Los Lobos’, de Samuel Kishi Leopo

Segundo longa do realizador mexicano Samuel Kishi é baseado nas memórias de infância do diretor. Um retrato da migração forçada por causas econômicas que joga uma mãe e seus dois filhos crianças em uma cidade no Novo México, EUA. A super exploração da força de trabalho da mãe é tão forte no filme quanto a penúria, a melancolia e o isolamento das duas crianças encerradas dentro de um quarto alugado paupérrimo.

Amargo e poderoso (mas com breves e belos momentos de fuga e ternura) retratado do triste destino de milhões de latino-americanos que são empurrados a uma desterritorialização em busca de dinheiro, do dólar, da esperança de fugir da miséria para serem explorados e marginalizados nos quintais de um espaço que é a pura materialização da deterioração do sonho americano.

‘Longa Noite’, de Eloy Enciso

O longa do galego Eloy Enciso vem despertando amor e ódio em críticos de alto nível por todos os cantos.

Uma estrutura formal muito rígida, como proposta estética central, oferece aberturas para se penetrar no tecido do filme. A questão está em aceitar essa entrada e sentir aquilo que o filme propõe, no rigor dos textos, das falas (diegéticas ou em voz over) e na relação dos corpos dispostos no quadro de maneira meticulosa, mais como corpos-espectro do que peronas naturais ao espaço cênico.

A memória dos primeiros anos após a Guerra Civil espanhola, a relação ambígua em se aceitar o fascismo de Franco recém imposto ao país – as noções de ordem, poder e submissão que esse regime carrega. Ou se recusar a esse estado de coisas que anula os indivíduos e os torna seres-autômatos que agem mecanicamente, rejeitam suas subjetivações em detrimento a uma vida-morta que os joga na sujeição.

Memórias dos que lutaram contra o fascismo e perderam; suas lembranças dos próprios sofrimentos e torturas e das pessoas próximas que foram mortas, presas ou se exilaram.

A presença daqueles que aceitam e exaltam (ou se mantém passivos) a obediência cega ao novo líder supremo da ordem castradora, em que a desigualdade social é fato dado e impossível de ser alterado.

Tudo isso dentro de uma encenação muito rigorosa e formalista. O uso constante dos campos e contra-campos em todos os diálogos, o antinaturalismo na mise-en-scène contrastando a fragilidade desses corpos e sua relação com os espaços vivos onde se prostram ou, como no caso do protagonista, se põe em movimento constante em direção a um destino desconhecido.

Eu fico com os que penetraram o filme e gostaram dessa jornada e de sua proposta, mesmo com suas imperfeições e excessos de formalismo.

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Ressalto, também,  a presença na programação do festival de um filme incrível que pretendo futuramente voltar a ele: ‘O Tango do Viúvo e seu Espelho Deformador’, que mescla rolos do primeiro longa de Raúl Ruiz (rodados em 1967, ainda no Chile), recém-encontrados e completados por sua viúva, a cineasta e montadora de inúmeros de seus filmes,  Valeria Sarmiento. Uma exuberante experiência em que se fundem imagens mudas –  captadas há décadas e deixadas incompletas – com toda a banda sonora. falas textos, ruídos e trilha sonora, acrescentada em 2019, bem como todo um processo de montagem que interfere radicalmente nos planos encontrado. Esse material híbrido, além de criar um diálogo com a obra enorme de Ruiz,  se materializa na tela em um ensaio contemporâneo que mistura cacos ficcionais distantes do tempo presente com novos instantes reflexivos.

Para finalizar, resta dizer o quão bom foi o processo de curadoria do 9º Olhar de Cinema na escolha  da qualidade dos filmes da programação. Todos os que aqui foram comentados nesse texto tiveram no Olhar sua primeira exibição no Brasil. Mas vale lembrar que o Olhar 2020 ofereceu importantes filmes contemporâneos exibidos recentemente no país em outras mostras e festivais, como  os ótimos ‘O Canto dos Ossos’, de Jorge Polo e Petrus de Bairros e ‘Yãmiyhex – As Mulheres-Espírito’ de Sueli Maxakali e Isael Maxakali e o muito bom ‘Cabeça de Nêgo’, de Déo Cardoso.

‘Dublê de Corpo’ e o Cinema dos Simulacros de Brian de Palma

Por Fernando Oriente

O cinema de Brian De Palma é, de maneira muito mais radical que em qualquer outro cineasta, o ponto mais alto de uma arte do simulacro. Seu longa de 1984, ‘Dublê de Corpo’, nos serve de exemplo que resume muitas das principais características, processos e construções fílmicas do diretor. Um filme em que as potências dos simulacros estão impressas na própria matéria da obra, em que a implosão das ideias de modelo, original e verdade conduzem a narrativa por meio de imagens que carregam uma constante sobreposição de camadas de significação, de representações que surgem e se afirmam para logo serem desfeitas pelo irrompimento na tela de, cada vez mais, novas e outras imagens-simulacro.

É cinema moderno por excelência, sendo esse cinema “um cinema do interstício, do ocluso, do recalcado e, portanto, urdido pelo fora de campo”, com escreve Luiz Soares Júnior em sua crítica na Cinética a outra obra-prima de De Palma, ‘Síndrome de Caim’ (1992). ‘Dublê de Corpo’ é uma obra em que esse fora de campo, aquilo que está ausente do quadro, remete não só as tensões construídas dentro da própria narrativa – e que constantemente invocam outros elementos diegéticos que não estão presentas na cena -, mas também a outros cinemas, a outros filmes, não apenas de De Palma, mas principalmente daquele que é o ponto de origem, o fundamento de sua obra: os longas de Alfred Hitchcock. Hitchcock é para Brian De Palma a fonte da criação de seus simulacros; em cada um de seus filmes ele remete o espectador (e a própria narrativa e suas imagens), por meio de imagens-simulacro, à obra de Hitchcock.

De Palma emula seu cineasta fetiche não por meio de processos simplesmente miméticos, mas pela construção de cenas, narrativas, situações dramáticas e histórias que são reconfiguradas por meio de imagens-simulacro criadas por De Palma e que surgem para o espectador de maneira como se fossem imagens originais. De Palma cria imagens novas que remetem, emulam e são simulacro de outro cinema, aquele de Hitchcock. O simulacro é a potência pela qual o cinema de De Palma se materializa. Como escreve Deleuze em ‘Platão e o Simulacro’:

“O simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original quanto a cópia, tanto o modelo como a reprodução. Pelo menos das duas séries divergentes interiorizadas no simulacro, nenhuma pode ser designada como o original, nenhuma como a cópia.” (Deleuze, [1969] 2009: 266).

O que Brian De Palma cria em ‘Dublê de Corpo’ é uma obra nova; um novo que, como simulacro, remete a outro cinema, a outras imagens, mas de uma maneira em que o filme acaba por promover novos sentidos e significações daquilo que emula. É essa a potência do simulacro dentro de um mundo em que nada mais é original, onde não existe mais um modelo a ser copiado, existe apenas a diferença positiva dos simulacros.

'Dublê de Corpo'

‘Dublê de Corpo’ remete, como simulacro, a dois filmes seminais de Hitchcock: ‘Um Corpo que Cai’ (1958) e ‘Janela Indiscreta’ (1954), mas emula-os dentro da potência criadora do simulacro. O que De Palma promove em ‘Dublê de Corpo’ é uma apropriação criadora dos filmes de Alfred Hitchcock, em que opera uma construção fílmica que, ao mesmo tempo que remete a seu cineasta fetiche, o reconfigura distorcendo-o. “De Palma introduz uma clivagem da clivagem, porque um artista tardio precisa sempre exagerar na dose para se demarcar da transparência paterna” (Sores Júnior, 2016). De Palma, como todo cineasta moderno, é exemplo ímpar desse tipo de artista tardio que comenta Luiz Soares Júnior. Ao mesmo tempo em que recria e distorce, através de imagens simulacro, os filmes de Hitchcock, De Palma mata o pai por meio da força positivo-criadora desses mesmos simulacros que constrói.

Em breves linhas gerais, ‘Dublê de Corpo’ acompanha seu protagonista Jake, um  pretendente a ator que não consegue arrumar trabalhos bons, apenas pontas ou personagens em filme de gênero de baixíssimo orçamento. Após pegar sua mulher traindo-o ele abandona sua casa e passa a procurar papéis em testes de elenco, bem como um novo lugar para morar. Nesse meio tempo conhece Sam, que se apresenta como ator e que coincidentemente sempre aparece onde Jake está, seja nos testes, seja nas aulas de atuação. Após desabafar seus problemas para esse novo amigo e ser consolado por ele, Jake recebe o convite de Sam para morar por cinco semanas na casa de um amigo milionário que se encontra na Europa – “para tomar conta do local e molhar as plantas”. A casa, uma típica mansão de arquitetura pós-moderna e decoração cafona anos 1980, fica no alto de uma colina em Hollywood, região habitada por celebridades e milionários da cidade. Antes de sair, Sam leva Jake até um telescópio que fica em uma das inúmeras janelas da mansão e o faz olhar, pelo visor, uma vizinha seminua, que dança e se acaricia com as persianas da casa aberta. “Ela faz isso toda noite e no mesmo horário”, comenta Sam. A isca é mordida e Jake, já no dia seguinte, corre ao telescópio para ver esse pequeno show erótico da vizinha.

De Palma constrói essa mansão como um cenário que se apresenta como falso, artificial em seu aspecto espetacular e sua arquitetura, que vista de longe remete a um grande olho situado no alto de uma colina. Essa casa-olho está lá para olhar, para fazer Jake olhar e ver o que Sam quer que veja, bem como, e principalmente, para fazer o espectador ver aquilo que De Palma quer que ele veja, ou pense que está vendo. O olhar da mansão irá subsumir-se vários olhares: o da câmera de De Palma, o do espectador, o de Jake e o do telescópio. A casa-olho como imagem-simulacro está lá para ser o olhar que revelará outros simulacros.

'Dublê de Corpo', de Brian De Palma'

Obcecado pela vizinha sedutora Jake passa a observá-la e percebe a presença de um tipo suspeito que ronda sua casa e que a segue pela cidade. Várias situações ocorrem, Jake acaba por conhecer a vizinha – Gloria. Os dois têm um pequeno interlúdio erótico numa praia e a obsessão do protagonista por essa mulher só aumenta. No mesmo dia em que quase transam na praia, à noite Jake vai ao telescópio e percebe que o tipo estranho que perseguia a vizinha invadiu a casa dela. Sai desesperado para tentar salvá-la, mas não chega a tempo e Gloria é assassinada. Jake é a testemunha, uma testemunha perfeita.

De Palma joga com o espectador ao deixar visível a artificialidade de todas essas situações – o show erótico na janela, o tipo suspeitíssimo de visual ameaçador que persegue Gloria, a mansão-olho toda envidraçada com um telescópio providencialmente colocado à janela e até mesmo a própria situação nada plausível de se conhecer um estranho que se torna seu amigo e, de repente, estar numa mansão no alto de uma colina assistindo a um assassinato e atuando no papel de testemunha perfeita.

Quase sempre no cinema de De Palma, as intensões dos personagens secundários-antagonistas são tornadas claras ao espectador desde o início, só seus protagonistas não percebem. Tudo se parece, a quem assiste ao filme, como sendo falso, como sendo artifícios. O diretor não disfarça alguns de seus principais simulacros para o espectador, só seus protagonistas é que jogam eles mesmos o jogo de isca, atuam dentro de falsificações a partir das quais são tragados; são as vítimas perfeitas para os simulacros de Brian De Palma. Como escreve Iannis Katsahnias em uma crítica na Cahiers du Cinéma sobre ‘Missão Impossível’ (outro imenso filme que Brian De Palma realizou em 1996):  “Todo personagem de De Palma é um sonhador que, como que por acaso, acaba num pesadelo”.

Mas o acaso, outro forte agenciador de simulacros em Brian De Palma. vem sempre provocar mudanças brutas nas narrativas. Então, após ser a testemunha perfeita para o assassinato de Gloria, Jake, “por acaso”, assiste a um canal erótico na TV à cabo e vê uma atriz pornô dançando e se acariciando exatamente como Gloria fazia na janela. Pronto a dúvida é inserida, as certezas desabam e temos agora nosso protagonista a tentar descobrir quem é essa dublê de corpo e por quem ela foi contratada para seduzi-lo  e fazer dele a testemunha perfeita. As máscaras passam a cair uma após a outra, todas as identidades em que Jake acreditava passam a se desfazer, os simulacros vêm à tona e a tensão dramática se insere no centro de ‘Dublê de Corpo’. Jake passa a perceber que tudo era falso, uma falsidade que é marca registrada do próprio cenário onde se desenrola o filme: Hollywood, máquina de construir sonhos e ilusões, fonte inesgotável de identidades e narrativas fictícias, terra dos simulacros.

O telescópio pelo qual Jake observa tanto Gloria quanto o seu duplo recriado – seu simulacro (a atriz pornô que dança para mimetizar seu objeto e ao mesmo tempo para seduzir aquele que a observa) – é mais um dos aparatos de registros de imagem que De Palma insere em Dublê de Corpo, um novo registro de olhar em subsunção em relação ao olhar da câmera, dos personagens e de quem assiste ao filme.  E no cinema de De Palma, o olhar é sempre fracionado, é decomposto numa relação dialética entre o olhar da câmera, o dos personagens, o dos aparatos de registro de imagens e o do espectador – por isso a constante alternância, dentro de seus filmes, entre planos subjetivos e planos narrativos em terceira pessoa – transição que muitas vezes se dá dentro do mesmo plano. Mas este próprio olhar da câmera é constantemente repartido, fraturado e invadido pelo olhar desses outros “aparatos de registro de imagem – câmeras de vídeo, máquinas fotográficas, óculos ou até mesmo simples olhares ocultos (…)” que promovem na diegese mesma dos filmes “(…) algum tipo de joguete de simulacro e manipulação”, como escreve Bruno Andrade em um texto na Contracampo sobre Brian De Palma.

Essa intromissão de outros olhares, outros pontos de vista estão em ‘Dublê de Corpo’, como nos outros filmes de Brian De Palma, para desestabilizar o próprio caráter ontológico da imagem, multiplicando suas formas de assimilação tanto por parte dos personagens quanto por parte do espectador, questionando a própria veracidade daquilo que se vê. Esse processo dos múltiplos aparatos de registro do olhar é tanto uma forma de conduzir e manipular os personagens, como de tragar o espectador num jogo constante de representações que se dissolvem em camadas e mais camadas de simulacros de ficção projetados na tela e pelos quais a certeza daquilo que se vê desaparece no meio desse jogo. O simulacro no (e por meio do) olhar é a própria matéria com que De Palam dirige as texturas dos dramas em que os personagens estão inseridos.

É o olhar, ele mesmo agente de promoção e absorção do simulacro, que conduz o cinema de Brian De Palma. Como afirma Iannis Katsahnias, no cinema do diretor “o olho tornou-se câmera em um mundo regido pelo olhar”. Nos filmes de De Palma o olhar fraturado cria uma “dialética do olhar”. O que vemos em ‘Dublê de Corpo’ é o olhar subjetivo de Jake, conduzido pelas intensões de Sam em faze-lo olhar, que direcionam o olhar do espectador, por meio do olhar da câmera de De Palma a ser transferido para o olhar do telescópio –  como um aparato de registro de imagens – que se dirige a atriz pornô Holly – o simulacro de Gloria – que sabe que está sendo olhada. São múltiplos olhares que, fracionados, conduzem a diegese que só se realiza enquanto fruto desses múltiplos olhares.

Esse processo de construção do olhar fracionado que vemos em ‘Dublê de Corpo’ se relaciona com o que Katsahnias define como “uma relação intersubjetiva entre um sujeito que olhasse e um sujeito olhado que sabendo-se olhado, torna-se ainda mais complexa pela existência de um terceiro olhar”. Nesta passagem, Katsahnias se refere a uma sequência de ‘Irmãs Diabólicas’ (longa que Brian De Palma realizou em 1972) na qual esse terceiro olhar é o de uma câmera de televisão que grava a cena no interior do filme. No caso das sequências da dança erótica de Gloria-Holly, esse terceiro olhar pode ser visto como o olhar do telescópio. Mas, ainda aprofundando o comentário de Katsahnias, existe sempre nos filmes de De Palma, pelo menos, um quarto e um quinto olhares: o de cineasta e o do espectador.

A ficção de ‘Dublê de Corpo’, simulacro por si só – algo que podemos definir como uma das essências do próprio cinema –, tem sua força nessa constante sobreposição de outros simulacros, e atinge seu ponto mais alto devido à perfeição com que De Palma conduz a mise-en-scène, comandando o olhar do espectador o tempo todo, fazendo-o seguir seus simulacros de imagem e dramas encenados, fazendo-o perder-se nesse joguete de múltiplas camadas de percepção e múltiplos olhares, tanto diante daquilo que vê quanto na forma com que tenta codificar a evolução narrativa, ela própria redimensionada constantemente por impulso dos simulacros.

'Dublê de Corpo' 2

Os simulacros em ‘Dublê de Corpo’ remetem também ao próprio fazer cinema, com a constate inserção de filmes dentro do filme. Tanto na abertura quanto na sequência dos créditos finais vemos Jake caracterizado como vampiro durante as filmagens de uma produção de terror vagabunda, misto de horror e soft porn exploitation. As sequências começam como se assistíssemos a uma cena deste filme do ponto de vista de espectadores, mas, por meio de recuos de câmera ou pela intromissão de vozes em off que trazem as frases do diretor desse filme, somos traspostos do interior de uma cena para o estúdio onde ela é filmada, um processo de exposição, no interior do filme, que se revela em um devir do simulacro sendo fabricação, o artifício do falso sendo desmascarado por outro mascaramento, o filme em si.

E aqui De Palma faz uma ligação fundamental: ao mostrar o set de um filme vagabundo, expõe mais uma das filiações de ‘Dublê de Corpo’, nesse caso com cinema de tipo B, de baixo orçamento e temática pop-erótica, que se revela como mais um dentre os múltiplos pontos de origem, mais uma instância fundadora de ‘Dublê de Corpo’ – uma fonte a mais da qual o cineasta irá beber para, a partir dela, criar suas imagens-simulacro e sua narrativa-simulacro.

Esse processo é ainda mais notável na sequência em que Jake vai procurar a atriz pornô que acredita ser a dublê de corpo de sua vizinha assassinada. Ele entra em um estúdio de cinema pornográfico com a desculpa de estar procurando um papel, mas por meio de um corte seco, De Palma encena toda uma sequência de um filme pornô em que Jake é o protagonista – com movimentos de câmera constantes, mudanças de cenários e o décor, os atores e as atrizes caracterizados dentro de um típico do imaginário porn sado-masô new wave dos anos 1980. A cena segue Jake até ele encontrar, em cena, Holly (a estrela pornô, simulacro de sua vizinha). Os dois transam, e na transa De Palma alterna planos de Jake com Holly a planos dele com Gloria – essa cena é sintomática, pois o jogo de simulacros torna-se matéria, dá-se a ver na superfície na tela – Jake, seu desejo por Gloria, desejo esse provocado nele pelo simulacro dela – a atriz pornô Holly. É como se por meio da alternância de planos Jake transasse ao mesmo tempo com Gloria e com seu simulacro. Mas a própria sequência se revela também mais um simulacro quando De Palma quebra o continuum da cena ao revelar Jake e Holly, já num post coitum, em meio a um set de filmagens.

Dentro desses filmes dentro do filme, nessas quebras do realismo-narrativo pela inserção de cenas-simulacros que revelam o fazer cinema, De Palma reserva, para o desfecho do embate final entre Jake e o assassino, mais um jogo de simulacros. Quando o protagonista, em meio a um ataque de claustrofobia, deitado no fundo de uma cova está sendo enterrado vivo por seu antagonista, por meio de um corte e uma mudança de eixo da câmera, De Palma faz com que a ação se desloque para um set de filmagens, em que Jake é retirado do fundo daquela cova, mas que agora é parte de um cenário no interior de um estúdio. Um diretor (o mesmo que vemos na cena de abertura e nos créditos finais) conversa com ele, tenta convencê-lo a ir embora e diz que filmarão a cena depois mas, ao pressentir que se abandonar as gravações será demitido, ele retorna para dentro da cova-cenário e diz que terminará a cena. Novo corte e De Palma nos joga de volta dentro do clímax do conflito entre Jake e o assassino – instante e instância diegética que ele acabara de interromper. A coragem que Jake demostrara no set, em terminar uma cena em meio a um ataque claustrofóbico, é a mesma coragem com ele irá enfrentar o vilão da trama e se salvar.

É nessa constante quebra de certezas, de identidades, de espaços de ação, de índices de verdade diegéticas, nestas camadas sobrepostas de falsos sobre falsos que ‘Dublê de Corpo’ extrai ainda mais força. Relevar que um filme é construído é expor o processo de fabricação de simulacros. Mas não se trata apenas de um meta-cinema – algo já banalizado. O que De Palma promove com esses filmes dentro do filme é um constante retorno ao próprio corpo principal da evolução narrativa de ‘Dublê de Corpo’, mas um retorno nos quais os personagens e as ações voltam modificados, já portadores de diferenças, já trazendo a diferença no próprio retornar. Filmes outros que quebram a ilusão da continuidade do filme principal, mas que ao mesmo tempo, oferecem soluções, refratam desejos e permitem que os personagens adotem novas ações ou revelem outras intenções, não dentro da diegese central, mas nesses pequenos interstícios da evolução narrativa que são os filmes dentro do filme. Aqui já estamos diante do cinema de De Palma que se assume como um constante devir simulacro, em que nenhuma imagem merece confiança, ao mesmo tempo em que cada fotograma importa se quisermos chegar ao fundo da obra – fundo, ele mesmo, que possui vários centros, vários pontos e origens distintas que servem apenas para a fabricação das constantes imagens-simulacro do diretor.

'Dublê de Corpo' 3

‘Dublê de Corpo’ tem toda a sua construção promovida por meio dos mecanismos da simulação, processo engendrado pelo simulacro. “A simulação designa a potência para produzir um efeito” (Deleuze, [1969], 2009: 268). E é o efeito, ou mais precisamente, os efeitos que interessam a Brian De Palma. Efeitos de sentido que fazem a narrativa do filme ser introjetada pelo espectador como uma constante miríade de incertezas produzidas exatamente pelos efeitos da simulação. O que o filme promove é um desvelamento gradual do conteúdo latente situado abaixo do conteúdo manifesto, conteúdo esse que só chegamos a vislumbrar ao longo do filme na medida em que De Palma vai esfacelando todas as aparências e implodindo todas as identidades. Ou como escreve Deleuze “é preciso passar pelo conteúdo manifesto, mas somente para atingir ao conteúdo latente situado mil pés abaixo”.

Em ‘Dublê de Corpo’, como em todo seu cinema, Brian De Palma tanto manipula quanto seduz o espectador. Esse vaivém de simulacros, de imagens que se negam e se reconfiguram em novas representações e significações tencionam e deleitam constantemente quem assiste ao filme, quebram certezas, remetem a imagens anteriores que estão sempre no fora de quadro, no extracampo – no caso do filme, estas imagens modelo são os filmes de Hitchcock, mais precisamente ‘Um Corpo que Cai’ e ‘Janela Indiscreta’. Ao mesmo tempo em que somos manipulados em direção à imagens anteriores do próprio filme e às imagens fundadoras do cinema de De Palma – a obra de Alfred Hitchcock -, somos também, e até em maior grau, seduzidos por aquilo que o diretor nos dá a ver de maneira sempre incerta, por meio dessas imagens-simulacros que impossibilitam a total apreensão do que está diante dos nossos olhos, pela constante reconfiguração e anulação das cenas vistas por meio da introdução de novas imagens-simulacro que surgem na tela a todo instante. Um constante processo em que a narrativa do filme “se auto anula à medida em que progride, aniquila a própria ideia de ficção. Cada nova cena anula a precedente. Cada nova etapa conduz a um impasse e acaba por construir um palácio de espelhos de cristal. Aquilo que vemos não é aquilo no qual cremos” (Katsahnias).

A manipulação de De Palma é um constante seduzir do espectador pela potência com que cria um universo diegético de fascinação, de representações e falsificações do mundo como sonho, como simulacro. O primor com que diretor constrói suas potencializa aquilo que é visto na tela, essas imagens-simulacro que tentam recriar, em forma de pastiche, uma realidade que não tem nada de real – a realidade de De Palma é o mundo como simulacro, e é esse mundo que seduz, que provoca o gozo estético em quem assiste aos seus filmes.

'Dublê de Corpo 4'

É a sedução em participar de um jogo de camadas de representação em imagens que constantemente se sobrepõe umas às outras dentro de uma miríade de incertezas, sendo tudo conduzido por meio de uma mise-en-scène que prioriza a intensidade de daquilo que constrói. É essa intensidade, essa impossibilidade de aproximação total que tanto manipula, quanto seduz o espectador, seja em ‘Dublê de Corpo’, seja em qualquer filme assinado por Brian De Palma. Cinema de simulacros que manipulam e seduzem numa constante não certeza diante daquilo que se vê na tela, diante do gozo do incerto, do falso, do artifício, da simulação e do interstício. Gozo pela própria imagem-simulacro de um mundo que não é o real, que é idealizado no interior de uma concepção de cinema em que tudo é possível, uma máquina de sonhos, de desejos.

A sedução em ‘Dublê de Corpo’ (e em todos os filmes de De Palma) está centrada nesta vicissitude de incertezas diante de imagens-simulacro, desse jogo de identidades fantasmas – Jake, Gloria, Sam, a atriz pornô simulacro da outra mulher, o tipo ameaçador que mata Gloria, o verdadeiro vilão, que se faz vilão ao ter sua verdadeira identidade revelada por baixo da dupla aparência de amigo e assassino -, ou como escreve Deleuze diante do “falso como potência” engendrada por De Palma por meio de uma total fidelidade ao simulacro.

“Subindo à superfície, o simulacro faz cair sob a potência do falso (fantasma) o Mesmo e o Semelhante, o modelo e a cópia. (…) Longe de ser um novo fundamento, engole todo fundamento, assegura um universal desabamento, mas como acontecimento positivo e alegre.” (Deleuze, [1969] 2009: 268).

É esse processo, usado com maestria pelo cineasta, que fascina, manipula e seduz o espectador que se vê diante do gozo provocado pela implosão das diferenças, da anulação da distinção entre mesmo e semelhante, entre o modelo e a cópia, diante do surgimento de acontecimentos (imagéticos-narrativos) positivos que são, de fato, a própria diegese ficcional do cinema de Brian De Palma. “O mesmo e o semelhante não têm mais por essência senão ser simulados, isto é, exprimir o funcionamento do simulacro (…) um condensado de coexistências, um simultâneo de acontecimentos” (Deleuze).

Todo esse mecanismo de simulações imanentes ao simulacro e suas possiblidades faz com que De Palma crie em ‘Dublê de Corpo’ um universo diegético de disfarces que implodem as aparências da narrativa, que desorientam tanto seus personagens como aquele que assiste ao filme, fazendo surgir na tela um deleite de imagens que se projetam em coexistências e num constante simultâneo de acontecimentos. É ao promover, por meio de sua mise-en-scène, as forças contidas no artifício do simulacro, que o diretor eleva  ‘Dublê de Corpo’ a um objeto estético de gozo puro, que se dá por meio da assimilação/não assimilação de imagens arrebatadoras. O cinema de Brian De Palma é o devir da vontade de potência do simulacro.

(Texto dedicado ao amigo Luiz Soares Júnior)

REFERÊNCIAS: 

ANDARDE, B. Brian De Palma: mal visto, mal dito. Revista Contracampo, 2003. Disponível em : http://www.contracampo.com.br/47/depalmaldito.htm

DELEUZE, G. Lógica do Sentido. São Paulo, Perspectiva, 2009. [1969]

KATSAHNIAS, I. O mundo-olhar de Brian De Palma. Cahiers du Cinéma número 507, 1996 In. Dicionários de Cinema, 2010 Disponível em: https://dicionariosdecinema.blogspot.com/2010/12/o-mundo-olhar-de-brian-de-palma-iannis.html?fbclid=IwAR3Y4rBDT8chLTBym8r7Y1VuuX42kdG4M6IlLB0G1VO09PdIs2P8p5lXObY

SOARES JÚNIOR, L. Esquizofrenia e figuração. Revista Cinética, 2016. Disponível em: http://revistacinetica.com.br/nova/esquizofrenia-e-figuracao/

Os 30 melhores filmes da década – 2010 a 2019

Por Fernando Oriente

Aqui está a minha lista com os 30 melhores filmes da década – 2010 a 2019. Foram considerados todos os filmes vistos e revistos por mim e que foram lançados no mundo ao longo desses anos, independente de terem estreado no Brasil. Os anos de lançamento são relativos às primeiras exibições de cada filme, sendo em festivais, mostras ou estreias ao redor do mundo.

Muitos filmes, após serem revistos, cresceram muito para mim, por isso essa lista não segue ordem de preferência que estão nas muitas listas de melhores do ano publicadas aqui no Tudo Vai Bem.

Os 30 Melhores Filmes da Década – 2010 a 2019

  1. “Adeus à Linguagem”, de Jean-Luc Godard. 2014. (França/Suíça) – leia a crítica
  2. “Cavalo Dinheiro”, de Pedro Costa. 2014. (Portugal) – leia a crítica
  3. “Vitalina Varela”, de Pedro Costa. 2019. (Portugal)
  4. “Film Socialisme”, de Jean-Luc Godard. 2010. (França/Suíça) – leia a crítica
  5. “Imagem e Palavra”, de Jean-Luc Godard. 2018. (França/Suíça) – leia a crítica
  6. “A Vingança de Uma Mulher”, de Rita Azevedo Gomes. 2012. (Portugal)
  7. “O Homem Que Não Dormia”, de Edgard Navarro. 2011. (Brasil)
  8. “Minha Mãe”, de Nanni Moretti. 2015. (Itália) – leia a crítica
  9. “Educação Sentimental”, de Julio Bressane. 2013. (Brasil)
  10. “Cães Errantes”, de Tsai Ming-Liang. 2013. (Taiwan) e “Holy Motors”, de Leos Carax. 2012. (França)

  11. “Bem Vindo a Nova York”, de Abel Ferrara. 2014. (EUA) – leia a crítica
  12. “Na Praia a Noite Sozinha”, de Hong Sang-soo. 2017. (Coréia do Sul) – leia a crítica
  13. “O Gebo e a Sombra”, de Manoel de Oliveira”. 2012. (França/Portugal)
  14. “A Portuguesa”, de Rita Azevedo Gomes. 2018. (Portugal)
  15. “A Assassina”, de Hou Hsiao Hsien. 2015. (Taiwan) – leia a crítica
  16. “O Cavalo de Turim”, de Belá Tarr. 2011. (Hungria) – leia a crítica
  17. “La Sapienza”, de Eugene Green. 2014. (França) – leia a crítica
  18. “La Fille de Nulle Part”, de Jean-Claude Brisseau. 2012. (França)
  19. “O Ciúme”, de Philippe Garrel. 2013. (França) – leia a crítica
  20. “Zama”, de Lucrecia Martel. 2017. (Argentina/Brasil) – leia a crítica

  21. “A Mula”, de Clint Eastwood. 2018. (EUA)
  22. “Amanda”, de Mikhaël Hers. 2018. (França) – leia a crítica
  23. “O Som ao Redor”, de Kléber Mendonça Filho. 2012. (Brasil)
  24. “Elle”, de Paul Verhoeven. 2016. (França) – leia a crítica
  25. “A Academia das Musas”, de José Luis Guerín. 2015. (Espanha) – leia a crítica
  26. “Cemitério do Esplendor”, de Apichatpong Weerasethakul. 2015. (Tailândia) – leia a crítica
  27. “O Dia Depois”, de Hong Sang-soo. 2017. (Coréia do Sul)
  28. “Guerra do Paraguay”, de Luiz Rosemberg Filho. 2016. (Brasil)leia a crítica
  29. “Amar, Beber e Cantar”, de Alain Resnais. 2014. (França) – leia a crítica
  30. “Era Uma Vez Em…Hollywood”, de Quentin Tarantino. 2019. (EUA)

Menção especial:

  • “Twin Peaks – temporada 3 – O Retorno”, de David Lynch. 2017. (EUA) – leia a crítica
  • “The Other Side of the Wind”, de Orson Welles. 2018. (França/EUA)

Adeus à Linguagem

“Adeus à Linguagem”, de Jean-Luc Godard

Os 10 melhores filmes de 2019

Por Fernando Oriente

Aqui está a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo (e algumas outras capitais e cidades do Brasil) em 2019, na opinião do Tudo Vai Bem. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Não considerei exibições de filmes em mostras, sessões especiais ou festivais.

 Alguns filmes, após revisões, mudaram levemente de posição em relação à lista dos melhores do primeiro semestre desse ano.

Os 10 melhores filmes de 2019

  1. ‘Imagem e Palavra’, de Jean-Luc Godard. (França/Suíça) (leia crítica)
  2. ‘Amanda’ de Mikhaël Hers. (França) (leia crítica)
  3. ‘Em Trânsito’, de Christian Petzold. (Alemanha) (leia crítica)
  4. ‘O Paraíso Deve Ser Aqui’, de Elia Suleiman. (Palestina)
  5. ‘A Mula’, de Clint Eastwood. (EUA)
  6. ‘Abaixo a Gravidade’, de Edgard Navarro. (Brasil) (leia crítica)
  7. ‘No Coração do Mundo’, de Gabriel Martins e Maurílio Martins. (Brasil)
  8. ‘Temporada’, de André Novais Oliveira. (Brasil) (leia crítica)
  9. ‘Bacurau’, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. (Brasil)
  10. ‘Ad Astra’, de James Gray. (EUA)

Como o ano teve um nível um pouco acima da média em relação a boas estreias, fechar a lista foi tarefa difícil, por isso incluo mais cinco filmes que entraram em cartaz ao logo de 2019 e considero muito bons, lembrando que acabaram ficando de fora alguns outros belos longas:

  • ‘Inferninho’, de Guto Parente e Pedro Diogenes. (Brasil)
  • ‘Era Uma Vem Em…Hollywood’, de Quentin Tarantino. (EUA)
  • ‘O Irlandês’, de Martin Scorsese. (EUA)
  • ‘O Fim da Viagem, O Começo de Tudo’, de Kiyoshi Kurosawa. (Japão)
  • ‘A Noite Amarela’, de Ramon Porto Mota. (Brasil)

Le Livre d'Image

‘Imagem e Palavra’, de Jean-Luc Godard

‘Abaixo a Gravidade’, de Edgard Navarro

Por Fernando Oriente

Edgard Navarro é um cineasta do corpo e da carne. Da presença física desses corpos, da materialidade da carne, dos músculos, da pele que os compõem, ao mesmo tempo em que uma onipresente expectativa de ascese metafísica paira sobre o lado carnal e material – é no conflito paradoxal das limitações e potências emancipatórias dos corpos e a possibilidade de elevações espirituais que encontramos os tipos de Navarro. O estar no mundo, as relações com o outro (bem como consigo mesmo), as ações e os impulsos de cada personagem vêm do orgânico, do fisiológico, mas sempre almejam algo mais, uma elevação, um desprendimento. São o corpo e a carne que abrigam e condicionam as subjetividades. São agentes que carregam uma promessa de liberdade por meio dos sentidos e sensações, mas que constantemente são achatados sob o peso do mundo, presos sob o peso da existência. Em suma, são indivíduos soterrados em seu ser pela ação da gravidade, por essa força que gruda cada indivíduo à terra, impede a expansão, a dilatação e a ascensão da essência, fazendo do corpo e suas possibilidades fardos a serem carregados em um constante rastejar. Se o ser-humano vive essa situação, o cinema de Navarro busca, por meio de rupturas, das ações, das tensões, da encenação e de todo o percurso que seus tipos percorrem, colocá-los em uma jornada utópica no sentido de abolirem essa força gravitacional que os oprime. Mais do que anárquico, os filmes Edgard Navarro são libertários, porque o que conta não é aonde chegamos, mas aquilo que fazemos para tentar chegar; é nesse percurso que as imagens de Navarro priorizam o movimento, os encontros, as trocas, as texturas – o sexo, o toque, os discursos inflamados, os intercâmbios de fluídos e secreções, os choques e afagos entre os corpos, o sentir a carne do outro e nela buscar uma completude táctil para a materialidade de cada um e, a partir daí, almejar um desprendimento do terreno em direção ao céu; sim os personagens de Edgard Navarro querem voar.

Em ‘Abaixo a Gravidade’ Edgard Navarro pega esses temas tão presentes em sua obra, trabalhados de diferentes maneiras desde seus curtas em Super 8 dos anos 1970 e 80, passando pelo seminal ‘Super Outro’ (1989) até ‘O Homem que Não Dormia’ (2011) – esse um dos mais incontornáveis filmes do cinema brasileiro das últimas décadas. Em ‘Abaixo a Gravidade’, Navarro deixa um pouco (bem pouco) de lado a visceralidade e a urgência carnal que imprime nas imagens desses trabalhos anteriores, para, além de um tratamento visual mais ascético, se concentrar com maior ênfase na relação isolada dos personagens com os espaços, seus deslocamentos, bem como numa certa distância física em relação ao outro e num maior mergulho dentro desses corpos como entidades individuais, apartadas do contato físico com o outro. Em tempos de individualismo galopante, os personagens do novo filme de Navarro não se distanciam dos demais (as interações com o próximo seguem centrais no filme), mas estão mais fechados dentro de seus próprios invólucros corpóreos – aqui o desejo pelo outro (e pelo do desejo do outro) só é concretizado em momentos isolados.

A evolução dramática de ‘Abaixo a Gravidade’ apresenta uma maior serenidade, dando mais ênfase a construção das relações internas dos personagens consigo mesmos e os ambientes que os cercam, para apenas depois, coloca-los em contato com os demais. É somente na segunda parte do filme, sob efeito de potências metafísicas que desestabilizam a lei da gravidade, que corpos se tocam, se preenchem, ao mesmo tempo que tipos isolados rompem com suas amarras e se põe em marcha rumo a elevações e asceses, tanto existenciais quanto físicas.  Na primeira parte do filme, bem como em seu desfecho, os desejos individuais são resolvidos dentro das tensões, deslocamentos e aspirações interiores dos personagens. Uma impossibilidade em relação ao outro surge como barreira, ao mesmo tempo em que libera os tipos para seguirem seus próprios caminhos e impulsos em meio às incertezas e aspirações conflitantes; tudo sob o peso esmagador da gravidade.

Como em ‘O Homem que Não Dormia’, ‘Abaixo a Gravidade’ traz inúmeros personagens em cena, todos fundamentais e trabalhados em profundidade de camadas e motivações. Temos um protagonista, Bené (Everaldo Pontes), um velho que abandonou Salvador para viver uma vida isolada no campo, em meio a natureza e aos habitantes de um vilarejo no interior da Bahia. Essa fuga urbana idílica de Bené, que passa seus dias de retiro em meio às frutas e legumes que cultiva, sessões de meditação espiritual, passeios pela região e recordações do passado nos mostram um personagem deslocado, que apenas superficialmente acredita que encontrou a paz interior. Mas basta a entrada da jovem Letícia (Rita Carelli) em cena para que suas certezas se desestabilizem. A subia necessidade de Letícia em retornar à capital após dar à luz a seu filho, fazem com que Bené volte a Salvador e lá encare a vida sem os devaneios da falsa proteção que o campo lhe conferia como um escudo de realidade. Agora seus conflitos internos, as limitações de seu corpo, seus impulsos carnais e suas incertezas da alma vêm à tona.

Doente, apaixonado por Letícia e vagando pelas ruas de Salvador, nosso protagonista encontra antigos conhecidos, novos habitantes dessa cidade que parece tão diferente para ele e moradores de rua (entre eles o tipo interpretado pelo brilhante Ramon Vane, que assim como em ‘O Homem que Não Dormia’, dá vida um personagem monumental). São esses últimos, seres abandonados e invisíveis para a grande maioria das pessoas e personagens chave dentro do cinema de Edgard Navarro, que trazem a realidade crua da existência humana em toda sua precariedade, violência e potencialidades libertárias – são tipos céticos, marginalizados, mas também sonhadores, que carregam dentro de si os mesmos conflitos e desejos de ascensão metafísica que Bené procurava em suas incursões por diversas formas de espiritualidade – ele reza ao Deus católico, faz exercícios de meditação indiana e realiza sessões de descarrego e exorcismo seguindo preceitos de religiões de matriz africana. Mas é na rua da cidade grande, em meio à paisagem de construções degradadas, da sujeira, da violência e da precariedade do espaço urbano que está a verdade que Bené procura fugir, o peso da gravidade achatando corpos e mentes, mas permeado pelo constante desejo de rompimento, pela vontade de voar. Navarro filma a cidade de maneira brilhante, faz de seus espaços, movimentos, desordem, detalhes e texturas um personagem central.

Quanto mais o filme se desenvolve nas ruas de Salvador, mais Navarro vai inserindo no tecido dramático sua tradicional liberdade discursiva. O relativo realismo das primeiras cenas vai dando lugar a mudanças de foco narrativo, a um andamento mais ágil e frenético na evolução das tramas, a aparição de novos personagens e os tradicionais elementos de simbologia do diretor vão sendo introduzidos, com a presença de situações e premissas diegéticas carregadas de metáforas e elementos fantásticos. É nesse desprendimento discursivo do real mimetizado, mas que se mantém fiel a uma recriação espaço-temporal do mundo baseada na verossimilhança, que Navarro faz com que o fantástico, o metafísico e o simbólico penetrem a realidade estabelecida e sejam assimilados dentro desse real não como elementos perturbadores da lógica, mas como situações que expandem as percepções e desnudam uma realidade muito mais rica de possibilidades, impregnada pela negação do racionalismo mecânico. A riqueza e o mistérios da vida estão no confronto ao pragmatismo, num viver à margem da sociedade, na luta contra o peso da imobilidade e na rejeição da castração das possibilidades de sonhar e inverter a lógica. O cinema é capaz de ver e traduzir em imagens e sons o indizível, aquilo que foge das convenções, aquilo que escapa a nossos olhos cansados. Esse é o cinema de Edgard Navarro, sua fé na imagem como agente libertador.

Quando Navarro solta seu filme e sua realidade recriada dessas amarras, a narrativa é tomada por personagens que se duplicam e reconfiguram (como Letícia) e de tipos que surgem em cena para ampliar e desestabilizar as questões enunciativas do filme – como o incrível personagem vivido por Bertrand Duarte (mais uma vez em atuação iluminada), uma espécie de coxinha que entra em crise existencial e começa a refletir sobre questões metafísicas (que seu psicanalista boçal é incapaz de compreender) e o morador de rua que constrói asas a partir de materiais encontrados no lixo para poder voar. Em meio a tudo isso aparece um asteroide na órbita da Terra que promete alterar a força da gravidade na região de Salvador – aqui Navarro insere na narrativa o elemento libertador que irá possibilitar os tipos a viverem livres do peso que os esmagam, consumar deus desejos, trepar, voar; em suma: Abaixo a Gravidade!

Entre as inúmeras reflexões postas ao longo do filme, camadas de citações e referências, é particularmente notável a presença da desconstrução simbólica da escultura ‘O Pensador’, de Auguste Rodin. Edgard Navarro faz da presença sólida, pesada de uma escultura, estática e presa dentro de um volume geométrico, uma referência à imobilidade do homem reprimido ao ato racional de “pensar” – aqui apresentado como uma impossibilidade de movimento, tanto físico quanto existencial. Desde a cena em que uma réplica da célebre obra de Rodin sobrevoa Salvador presa a um helicóptero, até os artistas de rua que fazem performances de estátua viva caracterizados como “O Pensador”, a ideia de racionalidade e imobilidade do gesto presentes na obra de Rodin é finalmente detonada quando uma das estátuas vivas se transforma em Exu, a entidade cheia de pujanças e poder que com sua carga de potência metafísica manda o racionalismo e a estagnação às favas e traz em seu corpo e sua carne pulsantes a energia de transformação e a possibilidade de ação e ascensão.

Edgard Navarro é um realizador ímpar, seu cinema não se prende a sociologizações, a análises psicológicas rasas, ou a uma visão paternalista e piegas sobre questões político-econômicas. Seu interesse é no ser-humano, nas suas potências infinitas, no simbólico, no fantástico como presença material, no caráter libertário da existência, na autodeterminação que surge da negação da precariedade imposta a vidas marginalizadas que são colocas em cheque pelo desejo de elevação espiritual. Todos são capazes de agenciamentos. É na presença física dos corpos, seus movimentos, pulsões, gestos e imperfeições que a vida pode romper barreiras e as possibilidades libertárias surgem.

Com uma encenação pulsante e vigorosa, planos repletos de movimento –  tanto de câmera quanto internos ao quadro -, ângulos preciosos proporcionados por belíssimos posicionamentos de câmera, um andamento fluído da narrativa e uma bem-posta relação material entre homens e mulheres com os espaços em que estão inseridos, Edgard Navarro constrói seu discurso. Um cinema que faz de cada plano um gesto de afirmação da potência do próprio cinema, uma ética ao filmar e traduzir em imagens aquilo que Navarro acredita.

É negando e detonando o naturalismo e o racional, desestabilizando a lógica, introduzindo organicamente o metafísico, o fantástico e o espiritual na aspereza da vida e dos cenários, que ‘Abaixo a Gravidade’ vai se tornando um filme cada vez mais intenso. E a aparente simplicidade da solução final reservada a Bené, deixada em aberto, nada mais é do que a afirmação característica de Edgard Navarro que é pelo movimento, o deslocamento do corpo e da alma que homem pode seguir seu caminho rumo às possibilidades de libertação, em meio a constante luta contra a gravidade e a vontade de voar.

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2019

Por Fernando Oriente

Aqui está a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo entre a primeira semana de janeiro e a última semana de junho de 2019, na opinião do Tudo Vai Bem. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Não considerei lançamentos de filmes em cópias restauradas, mostras, sessões especiais ou festivais.

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2019

  1.  ‘Imagem e Palavra’, de Jean-Luc Godard. (França/Suíça) (leia crítica)
  2. ‘Em Trânsito’, de Christian Petzold. (Alemanha) (leia crítica)
  3. ‘Amanda’ de Mikhaël Hers. (França) (leia crítica)
  4. ‘Temporada’, de André Novais Oliveira. (Brasil) (leia crítica)
  5. ‘A Mula’, de Clint Eastwood. (EUA)
  6. ‘Inferninho’, de Guto Parente e Pedro Diogenes. (Brasil)
  7. ‘Nós’, de Jordan Peele. (EUA)
  8. ‘Santiago, Itália’, de Nanni Moretti. (Itália/Chile)
  9. ‘John Wick 3: Parabellum’ de Chad Stahelski. (EUA)
  10. ‘Vidro’, de M. Night Shyamalan. (EUA)

 

'Imagem e Palavra'

‘Imagem e Palavra’, de Jean-Luc Godard

‘Amanda’, de Mikhaël Hers

Por Fernando Oriente

Enquanto o cinema contemporâneo, em sua maioria, tateia, com acertos e erros, entre questões políticas, identitárias, revisões históricas, exibicionismos formalistas e releituras do cinema de gênero, Mikhaël Hers realiza seus filmes a partir de um elemento simples: o ser humano dentro da vida cotidiana. Sua matéria fílmica é o viver a vida, um dia após o outro. É como mulheres e homens lidam com o existir, desde suas tarefas e impulsos mais corriqueiros até as maneiras com que se adaptam ao acaso e ao que ele provoca; as alegrias, dores, tragédias e superações que surgem das casualidades para desestabilizar suas vivências, suas relações interpessoais e consigo mesmos. Isso é nítido no belo filme anterior do diretor, ‘Aquele Sentimento de Verão’ (2015), e nesse seu novo trabalho, ‘Amanda’ – um filme nada menos que sublime.

Amanda

Em ‘Amanda’, Hers concentra sua narrativa em duas personagens: a pequena Amanda, de sete anos e seu tio David, irmão de sua mãe. A relação entre os dois tem, por trás da aparente singeleza com que somos apresentados a eles na primeira parte do filme, uma complexidade intensa, que se faz perceber nas sutilezas, nos pequenos gestos, nas aproximações e afastamentos, bem como nos conflitos por meio dos quais os dois solidificam seus afetos um em relação ao outro, principalmente após a tragédia que irá mudar radicalmente suas vidas. Se nos primeiros 25 minutos de projeção, o que toma conta da tela é uma alegria sutil de viver e se relacionar com o mundo, após o evento trágico Mikhaël Hers irá se dedicar a construir uma narrativa em que a força dramática está não em apenas lidar com as perdas, mas sim em reconstruir as próprias existências, superar uma dor extrema e seguir adiante. E é na relação de David e Amanda, nos novos papeis que um tem que assumir na vida do outro, nessa nova forma de trocas afetivas que o destino impõe a eles, que o filme irá atingir sua força máxima. Tanto tio quanto sobrinha, independentemente da idade, têm que lidar com o peso de novas responsabilidades que são obrigados a assumir; tanto a infância de Amanda, quanto a juventude descompromissada de David, com seus 24 anos, são postas em xeque e a vida passa a cobrar uma nova postura de ambos, com renúncias e readequações. E a questão da ausência da figura materna, vivida de maneiras distintas por David e Amanda, irá tornar as novas relações postas ainda mais complexas, criando subtextos de representações da maternidade sublimada.

Embora os dois conduzam a dramaturgia, as demais personagens são fundamentais e Hers as compõe de maneira precisa e minuciosa. Com suas possibilidades e limitações, esses coadjuvantes exercem funções dramático-narrativas que refletem na vida de David e sua sobrinha. São esses outros que irão ampliar as maneiras de existir, agenciar sentimentos, se relacionar com o mundo, buscar forças para superar traumas e ainda redefinir as próprias subjetividades e convicções dos protagonistas, bem como a relação entre eles. Essas demais personagens são construídas por meio da força de seus próprios tipos. Cada subjetividade, cada característica dessas pessoas que participam da vida de Amanda e David é tratada com apuro e cuidado por Hers. Não existe nenhuma personagem banal, caricata ou desinteressante no filme. Mikhaël Hers é mestre em compor tipos humanos e dotá-los não só de funções essências à narrativa, mas também nos apresentar personagens complexos e repletos de texturas.

'Amanda'.

Hers trabalha com sentimentos de maneira frontal e com rara delicadeza, não evita as tensões dramáticas, ao contrário, explora ao máximo suas camadas e suas intensidades, bem como as consequências de tudo o que ocorre com suas personagens, buscando sempre potencializar o sentimento, mas sem nunca cair em sentimentalismos ou apelações melodramáticas. Não tem medo de usar, de maneira orgânica dentro da dramaturgia, a dor, a ternura, a cumplicidade, as fraquezas, a força interior e a possibilidade de esperança e recomeço. Não estetiza o sentimento, pelo contrário, abraça-o e faz dessa ternura e do amor algo que nada tem de piegas e sim de força dramático-narrativa. A sequência na partida de tênis, que fecha o filme, é um dos momentos mais sublimes do cinema recente, em que o afeto, o carinho e a fé na vida transbordam e contagiam a dramaturgia. Da simplicidade da metáfora, Hers extraí uma potência dramática imensa e nada menos que brilhante.

Cada situação dada pelo argumento é retomada, posta em movimento. Hers faz com que tudo o que vemos na tela tenha seu peso ontológico reafirmado dentro da evolução narrativa. Relações, personagens, ações, ocorrências, memórias e pendências entre os tipos e os dramas jamais são abandonadas. Tudo volta para fluir, ter sequência, ser deixado de lado ou mesmo ressignificado. A dramaturgia – com suas constantes evoluções de potência e significação, com o peso marcante do acaso e das constantes imprevisibilidades daquilo que vem de fora para abalar os centros motivacionais e existenciais e as convicções das personagens – trabalha invariavelmente com a impossibilidade de certezas. É o imponderável que determina o devir de tudo o que vemos diante de nós; nada passa batido ou é poupado por esse processo.

Toda cena em ‘Amanda’ é marcada pela liberdade de encenação e composição do quadro – sempre intensificando as movimentações internas e, ao mesmo tempo, se abrindo aos movimentos externos aos centros de tensão. É por meio da sensibilidade que imprime à mise-en-scéne que Mikhaël Hers constrói cada modulação dramática, dentro de uma imersão diegética que busca extrair as complexidades, o ordinário, as fissuras e aquilo que transborda ao que é posto pelas contingências da vida representada. Hers busca se ater à representação realista, mas sempre em direção à sensorialidade e aos sentimentos que emanam do real recriado, tanto dos tipos e seus conflitos, bem como da presença fugidia e veloz dessas personagens dentro do mundo em que estão inseridos. É a presença material e existencial desses corpos nos espaços, suas ações, o constante deslocar-se pelas ruas da cidade que caracterizam os modos de viver dos tipos. Vida como movimento, os movimentos externos que refratam os movimentos interiores – pensamentos, dúvidas, desejos e sentimentos.

‘Amanda’ é um filme em que a luz é ferramenta fundamental na determinação da dramaturgia. A luz de primavera/verão, os tons de amarelo, bem como o azulado desvanecido de crepúsculos e auroras, inundam as cenas externas e são filtradas nas sequências de interiores. O mesmo existe nas sequências de noite, com a luz artificial das ruas de Paris ou dos ambientes fechados. Hers usa a luz e suas variações de intensidade e tonalidade para escrever suas imagens na superfície da tela. A luz pauta os dramas – da alegria à dor -, espelha o interior das personagens e aponta caminhos em seus destinos. Sua instabilidade, do intenso ao suave, é o vir a ser imagético do viver.

'Amanda'

Nos planos construídos por Hers temos sempre a sensação imanente do tempo presente impressa nas imagens e sons; seja um tempo que passa na velocidade das ações triviais e no fluir agitado dos sentimentos corriqueiros ou no tempo lento e pesado dos silêncios, dos diálogos interrompidos, daquela incapacidade de verbalizar a angústia, a dor ou a impotência. Entre a euforia e o luto, a esperança tímida e a sensação da perda irreparável são as distintas fruições do tempo nos instantes do presente que marcam a composição de cada take. Um presente vivaz, mas que traz dentro de sua agitação os ecos do passado, das perdas, do que foi (ou não) feito, do que foi abandonado e de como as personagens chegaram até aqui. Nos movimentos rápidos e fluídos de câmera ou nos raros planos estáticos – todos unidos por meio de raccords desconcertantes – o tempo é sempre a constante com que Hers condiciona a mise-en-scéne a cada frame; uma existência temporal – do filme, das personagens – entre o fugidio e o petrificado.

Por trás de uma falsa sensação de simplicidade (no sentido pejorativo ou reducionista do termo) que o longa pode provocar em olhares afobados, Hers apresenta uma obra de refinadíssima complexidade e densidade. Entre tantas palavras, adjetivos e expressões, nada melhor para descrever o longa de Mikhaël Hers do que uma frase curta e simples: ‘Amanda’ é um filme lindo.

 

‘A Criada’, de Park Chan-Wook (2016)

Por Laisa Couto*

(em colaboração especial para o Tudo Vai Bem)

Uma forte sensação que perdura durante o filme desde suas primeiras cenas, a cada minuto, irá se dissolver em uma nuvem de vapor, é uma sensação permanente. O que aparentemente pode ser visto apenas com um drama erótico, se eleva numa grandeza extra-física, com uma câmera estranha, que sorrateira está a perscrutar os personagens à distância, à mercê de não entregar ao espectador os segredos de Sook-Hee e Hideko enrodilhadas numa trama de mentiras sustentada pelo trapaceiro Conde Fujiwara, na Coréia do Sul, nos anos 30. A fotografia colabora com a narrativa mantendo-se no mesmo fluxo, às vezes em diálogo íntimo com a imagem —  sustentando close-ups e planos-detalhe — muito embora se mostre primeiro com certo pudor; os olhos que não se sustentam por muito tempo, porém desejam devora-se um ao outro. As passagens dos planos obedecem a uma respiração compassada e cenas se movem em travellings delicados, imitando a ausência da gravidade.

Por vezes é possível fantasiar que não há nenhum maquinário ou força humana captando as imagens, parte disso se deve a bela atuação de Kim Tae-ri como Sook-Hee e Kim Min-hee como Nikedo, que protagonizam duas personagens que se envolvem amorosamente. Dentro de uma disciplina rígida dos costumes orientais, as personagens burlam todo estereótipo acrescentando a isso uma boa dose de sedução. O desejo que cresce em Sook-Hee e Hideko nasce dentro do útero imagético da mise-en-scéne criada por Park Chan-Wook. O erotismo não cai no vulgar e não é meramente cenográfico, é parte essencial da trama e ilustra a libertação de SooK-Hee e Nideko. Um balé de distanciamento e de aproximação, que vai além de uma entrega carnal.

A Criada

Sook-Hee, uma ladra que se passa por uma criada, deseja conquistar uma parte da herança de Nikedo e esta deseja se livrar de um casamento com seu tio, um colecionador de livros raros. As duas, para obter cada uma seu propósito, escondem suas verdadeiras intenções, mas quando se vêem emocionalmente e amorosamente envolvidas, confessam uma à outra seus planos secretos.

A princípio, Park pode mostrar uma história simplória para um espectador impaciente, porém, com seu domínio narrativo mostra três cartas na mesa e cada uma delas corresponde às três versões das verdades de cada personagem, e ele organiza essas cartas em uma montagem que divide o longa em três partes, onde o espectador enfim, desvendará as reais intenções das protagonistas por meio de flashbacks, incluindo as de Fujiwara.

A subjetividade em ‘A Criada’ está retrata em um jogo de farsas. Uma construção de camadas que sustentam as máscaras infantis e frágeis de Nikedo, a disputada herdeira nipônica, que em certas cenas aparece segurando um objeto cênico simbólico: uma boneca. Como uma marionete, ela foi criada e disciplina pelo tio, Kouzuki desde a infância exclusivamente para uma função: fazer leituras de raros livros eróticos japoneses, e por fim vendê-los ao público que assistia à restrita sessão de leituras de Nikedo: aristocratas locais. Essa faceta também é desenhada na relação entre a criada e a dama, Sook-Hee a princípio enxerga Nikedo como um bebê a quem deve cuidar e vestir. Durante a narrativa, Park esconde as cordas do teatro de marionetes, elas se movem invisíveis, fazendo alegoria à ocupação do Japão sobre a Coréia, na primeira metade do século XX. O velho Kouzuki é o próprio Japão dominando da vida de Nikedo, tolhendo a liberdade e subjugando à força de todos que o cercam, por meio do medo e da violência. A repressão na figura de Kouzuki, seu peso em cena e fala sempre ríspida, porém não anula a aura sutil e por vezes até cômica de como todos esses temas são embutidos na narrativa. Acredito que esta seria uma grandeza de Park, esconder os fios das subtramas e superar a imagem.

A violência no filme encontra seu auge nas cenas finais em uma dominação sadomasoquista, lidar com o perverso, com o sabor da dor e a ilusão do prazer é o ponto mais alto da crítica e reflexão de Park. Submissão, anulação, dominação e violência de um povo sobre o outro, a recorrente alegoria do Japão cruel sobre uma frágil Coréia.  Aqui, neste ponto, que seria o alto do orgasmo fílmico, o diretor rompe a corda que guia as marionetes do seu teatro, as cortinas descem, o jogo de sedução acaba, fazendo com que suas protagonistas, Nikedo e Sook-Hee encontrem a tão desejada liberdade que é voluptuosa e quase intocada, porém não impossível.

‘A Criada’ de Park Chan-Wook é uma charada que se veste de drama erótico para tratar de temas pulsantes com o viés político e histórico. Acredito que há muito mais segredos embutidos na obra que não consegui desvendar. A intenção de Park é que o espectador faça parte desse enigma, que encontre suas respostas e, de modo excepcional, ele mostra isso na primeira cena do filme, descortinando todos principais conflitos em pouco mais de um minuto em um fabuloso jogo de esconderijos e revelações.

*Laisa Couto é escritora, fotógrafa e ilustradora.

Aluna da segunda turma da Escola de Cinema do IEMA – Maranhão

‘Em Trânsito’ (Transit), de Christian Petzold

Por Fernando Oriente

Quando ‘Phoenix’ surgiu nas telas em 2014, o cinema de Christian Petzold atingiu um outro nível. Após anos realizando filmes interessantes, mas apenas medianos, ‘Phoenix’ nos chegava como uma obra notável. Um filme em que dramaturgia – no sentido das intensidades dos dramas contidos e encenados num desenvolvimento narrativo dentro da relação espaço-tempo – atingia níveis de excelência. Um grande filme, com uma mise-en-scéne primorosa, cheio de texturas, personagens muito bem trabalhados, situações de intensidade extrema e um discurso narrativo coeso e que transbordava as próprias conjunturas propostas; tudo dentro de um registro do Drama construído em suas potências máximas e em imagens portadoras de beleza e significações enormes. Agora Petzold nos apresenta seu novo trabalho; ‘Em Trânsito’, um filme que não só mantém a grandeza de seu longa anterior como ainda o ultrapassa.

'Transit'

‘Em Trânsito’ nos coloca diante da excelência que a dramaturgia pode atingir no cinema. Toda a força e o que de melhor podem oferecer o Drama estão impregnados em cada fotograma do longa. Os conflitos dramáticos não são evitados, eles são encarados de frente e ainda tornados mais fortes pelas ambiguidades, pela opções de encenação, peça decupagem desestabilizadora, pela dialética de não-certezas proposta no interior do processo narrativo-discursivo, pelas escolhas na construção dos planos, pela montagem ágil e pelas relações significantes que as situações em cena estabelecem com toda um conjuntura em que a enunciação tornada discurso fílmico carrega e amplia pra além do que vemos na tela.  Se aquilo que podemos definir como a história do filme já é fascinante, tudo o que transcende e se soma à narrativa diegética, como as constantes surpresas, a dubiedade das ações, as redefinições das personagens e das situações propostas, dos destinos que se esboçam e evanescem e as tensões no interior de cada plano fazem de ‘Em Trânsito’ um longa em que elementos clássicos são explorados ao máximo, mas em que as torções desconstrutivas desse classicismo mediante elementos de inovação e ruptura elevam o filme a um discurso que bebe tanto do clássico quanto do moderno e pode ser, sem exagero, considerado o que de melhor o cinema contemporâneo nos oferece.

O filme gira em torno de Georg, um alemão que procura fugir de Paris devido a eminente chegada dos nazistas à cidade. Em seu caminho de fuga ele se depara com um escritor, também alemão, morto em seu apartamento. No desespero para escapar da cidade, Georg rouba os escritos e os documentos do escritor morto e, após uma série de situações (aparentemente) involuntárias, assume a identidade desse; ele passa ser um homem em fuga e a encarnação de um fantasma. Sem nos estendermos aos detalhes, Georg chega a Marselha, local ainda não ocupado pelos nazistas e de onde saem os navios para os países neutros. Lá ele encontra Marie, mulher do escritor morto que busca reencontrar o marido para juntos fugirem da França.

Só que Marie havia abandonado o marido antes de fugir de Paris e se juntado a Richard, um médico alemão, também em fuga. Essas instabilidades nos laços afetivos, em que pessoas que se amam se veem constantemente abandonando o objeto amado para se manterem em movimento é um dos centros dramáticos mais fortes no filme. Abandonar e ser abandonado, se arrepender, querer partir, mas desistir para recuperar o sujeito amado – ou a ideia desse objeto da devoção amorosa. Mas busca-se um sujeito que não mais está lá, existe apenas como memória, vulto, espectro, ausência ou como uma projeção no corpo de um outro.

A grandeza de Petzold está em como ele vai estabelecer a relação entre Georg e Marie – e desses com os demais personagens. Os desencontros entre eles nos consulados são proporcionais as vezes em que se cruzam pelas ruas de Marselha – Marie constantemente interpela Georg nas ruas, pensando ver nele uma outra pessoa – seu marido abandonado, a projeção ou o espectro deste? Algo atrai um ao outro, embora a questão das identidades seja mantida oculta. Tanto Georg quanto Marie olham frequentemente em direção ao extracampo, estão sempre esperando a chegada de um outro. Eles se veem para logo se perderem de vista, caminham a esmo a procura um do outro, mesmo sem se conhecerem, sem saberem quem procuram de fato. E o destino acaba sempre por coloca-los novamente frente a frente. Eles perseguem fantasmas – fantasmas deles mesmos, fantasmas no outro. O passado penetra nesse presente em suspensão. Presente que é mais um desejo, desejo do que foi, desejo de estender-se no instante e desejo incerto pelo que está por vir. Vontade de recuperar o já vivido, de recuperar um sentimento transitório que existe apenas como fantasmagoria num presente que se esfacela diante deles.

Em Trânsito

Marselha é uma cidade definida pela morte eminente daqueles que de lá querem fugir ou lá se escondem, bem como pelas ausências com que os que ficaram têm de conviver após perderem aqueles que amam. É uma cidade habitada por mortos-vivos, por viventes que se apegam à memória do que foram ou poderiam vir a ser, por desiludidos, por suicidas e, principalmente, por fantasmas. A fantasmagoria das personagens não é apenas aquela de Georg, que vive entre sua desbotada identidade real e a materialização do fantasma do escritor morto, mas também a de tipos que se tornaram espectros daquilo que eram, fantasmas de suas antigas subjetividades. Todos e todas com quem Georg se relaciona trazem esse fantasmático, são seres espectrais – do menino de origem árabe que acaba de perder o pai (e projeta em Georg essa paternidade ausente) e sua mãe viúva, passando pela arquiteta judia que também aguarda embarcar para longe dali, o músico que espera o visto para ir trabalhar no México ao médico Richard – que, apaixonado por Marie, se imobiliza em sua necessidade de abandonar a cidade para se apegar a um amor não correspondido.

A relação de anseio e amor que surge de maneira difusa, porém intensa, entre Georg e Marie está mais calcada no desejo e em deslocamentos de projeções do que na conjuntura imanente. Marie oscila entre reviver em Georg o fantasma de seu marido morto e a ilusão idealizada de reencontrar o médico que abandonou em Paris. Georg aceita ser esse espectro do outro para poder amar e ser amado por Marie. Eles amam projeções e ausências daquilo que não são e daqueles que não mais estão, eles carregam sentimentos fantasmáticos, etéreos. Trazem o vulto evanescente do outro para suas essências estilhaçadas para seguir adiante, sem promessa nem esperança, apenas pulsão de sobrevivência e desejo de afeto e continuidade.

‘Em Trânsito’ trabalha com um tempo fraturado e em suspensão, da espera, do medo, do desejo, da dúvida e da incerteza. Temporalidade essa em que os anseios deslocados são preenchidos por fantasmagorias e suas projeções – temporalidade impressa por Petzold na construção das texturas de cada plano, em todas as transições de cena e na expectativa que promove em relação a cada nova imagem que surge. Subjetividades fantasmáticas que esse desejo visa – em vão – transformar em presenças materiais. Alguém que não mais existe é revivido no corpo materializado de outro. Fantasmas que entram em cena para suprir a carência de uma ausência. As personagens desejam que esses fantasmas se encarnem em outros corpos, em outros sujeitos que aceitam esse fantasmático na reconfiguração de suas identidades, nas flutuações de pulsões de amor e sobrevivência, num devir constante de si mesmos. Eles são preenchidos por esses vultos para se manterem vivos, para se permitirem (desejar) amar e existir.

Um filme de fantasmas, de vidas redefinidas pelo fantasmático – o fantasma, como afirma Deleuze, como uma testemunha dos acontecimentos, mas agente deslocador de identidades e que carrega nesse processo a perda do nome próprio, da subjetividade carnal e existencial. Espectros, mas encarnados na materialidade da imagem de cinema – nessa projeção de sombras que se materializam em uma tela em branco. Vidas precárias e incompletas sempre em deslocamento, em trânsito dentro de uma representação que funde o imaginário desejante à materialidade instável de um mundo em frangalhos. Um filme de ausências que constantemente procuram ser restabelecidas, resgatadas – ausências que não permitem o estabelecimento do luto. E “Em Trânsito’ é, também, um filme de amor. “Toda história de amor é uma história de fantasmas”, como escreveu David Foster Wallace em sua célebre frase.

Transit

A encenação de Petzold é condicionada e composta em função da tensão diegética que ele imprime às incertezas que determinam a dramaturgia. Existe uma construção de cena que visa o limítrofe do emocional das personagens, bem como o precário, o insuficiente e a incompletude perturbadora das situações dramáticas. A câmera compõe o quadro em função dos deslizamentos dessa tensão, presentes no interior do plano, mas sempre em diálogo com a presença de um fora de quadro que ameaça irromper pelas fissuras abertas pela dramaturgia e que estão fragilmente impostas na imagem, naquilo que o plano contém em seu interior.

‘Em Trânsito’ apresenta posicionamentos da câmera e angulações da perspectiva em que personagens se posicionam no espaço de forma tênue – em uma espécie de suspensão – em relação ao que se vê. Mas essas presenças dos tipos estão mais na função de expectativa, em uma constante angústia pelo que os espreita do lado de fora da cena; fora dos espaços físicos que mal os contém, fora dessa materialidade precária das imagens que Petzold emoldura no quadro.

São planos que buscam o incompleto das imagens dadas (e que refratam a angústia interior dos tipos em cena), em que algo sempre virá a perturbar de fora para dentro o interior do plano. Espera-se sempre – tanto as personagens quanto nós espectadores – que alguém vá entrar em cena. Constantemente se olha para as bordas laterais da tela, existe uma onipresente sensação provocada pelo desejo das personagens de que uma presença – fantasmática, idealizada ou material – virá preencher a incompletude da imagem, a incompletude e as ausências daqueles corpos em cena.

'Em Trânsito'

Sentado no bar que frequenta em Marselha, Georg olha sempre para trás, por cima do ombro, esperando a entrada de Marie no local – sua entrada pelas bordas do quadro para o interior do plano, para, dentro do quadro, se juntarem, trocarem olhares, se tocarem. Georg – esse vulto fantasmagórico já fraturado em sua existência material e subjetiva – irá sempre olhar para trás. Marie irá sempre chegar. Mas até quando? O acaso de Marie é tornar-se fantasma, evanescer-se e passar a habitar a vida de Georg apenas no campo espectral, da lembrança. Ela será apenas uma ausência, um vulto que existiu incerto em sua vida por muito pouco tempo e agora se esvaece no fantasmático da memória e do desejo de um amor que, desde o início, estava condenado a jamais se consumar.

Um ponto não menos significativo é o fato de Petzold realizar esse que seria um drama de época, da Segunda Guerra, na Europa dos dias de hoje. Aqui temos comentários sobre as tensões políticas do mundo de hoje, em que além de invasões territoriais e violência bélica, toda uma brutalidade econômica de países ricos ameaça invadir outros países. E o fato da Alemanha, maior potência econômica da Europa ser o agente invasor, mesmo da França – seu principal parceiro e potência coadjuvante na União Europeia – não é gratuito. As forças agressoras na geopolítica contemporânea também carregam dentro de si os fantasmas das antigas formas de agressão, tanto militar, mas muito mais econômica, de antigos conflitos. Uma Europa em crise vive com novas ameaças de fascismos e imperialismos; os fantasmas do passado mexem os pauzinhos no jogo de dominação neoliberal do presente.

‘Imagem e Palavra’ (Livre d’Image), de Jean-Luc Godard

Por Fernando Oriente

Fragmentos de ideias e interpretações a partir do arrebatador ‘Le Livre d’Image’

  • A mão manipula a imagem, acrescenta a essa imagem a palavra e os ruídos também manipulados por ela. Cinema é fazer, é vir a ser. E como Godard deixa claro desde os primeiros momentos de ‘Imagem e Palavra’, fazer é um pensar e materializar com as mãos. É um resgate do passado, uma criação no presente.
  • Discursos são construídos na exposição e ressignificação de imagens resgatadas e sobrepostas ao texto.
  • Livro de imagem; não de imagens.
  • O movimento da imagem. O movimento da mão que manuseia a imagem. O movimento do mundo. O movimento do pensar.
  • O texto se torna imagem e a imagem torna-se texto.
  • Os sentidos do discurso imagético-sonoro constantemente se dão naquilo que existe entre uma imagem e outra.
  • Criar é manipular, dar novos sentidos, questionar, validar ou recusar o visível, o audível.
  • Uma imagem sempre traz uma narrativa, evoca sons e outras imagens.
  • A palavra ainda ecoa quando o espectador já não vê a imagem, mas sim percebe sua ausência, vive o luto deixado pela imagem que esvanece.

'Imagem e Palavra'

  • Uma banda sonora com infinitas camadas: texto, ruídos, músicas, trechos de falas e diálogos de filmes dos mais diversos, vozes em off que se sobrepõe – toda a riqueza sonora que se põe em onipresente dialética com a imagem.
  • Trechos de filmes das mais distintas origens que se acumulam ao longo da história do cinema montados ao lado de imagens vulgares da violência cotidiana do mundo. O sublime e o banal. Um discurso de resistência (e permanência) em meio à falência da cultura ocidental.
  • Uma Europa cada vez mais impotente, o império cultural eurocêntrico desmorona. Uma sociedade de violência e intolerância que perdeu a noção do sublime, da arte, do acolhimento e da empatia. Existiu um dia essa outrora idealizada Europa?
  • O cinema norte-americano capaz de produzir filmes extraordinários. O país Estados Unidos capaz de promover a barbárie em escala mundial.
  • A imagem trava conflito contra a reificação que os signos assumem entre nós na sociedade da objetificação.
  • A imagem capta a banalização da morte e do horror. A vida (e a imagem) não é mais celebrada, é consumida e aniquilada.
  • Pensar, questionar e propor interpretações a partir da contingência de imagens dadas, ao mesmo tempo em que outras camadas de discurso surgem ao se reapropriar, atualizar e ressignificar essas imagens, rearranjando-as entre elas e em meio a textos e discursos. Ir além das imagens catalogadas, manipulando-as em novas direções interpretativas. Resgate e atualização.
  • A guerra ininterrupta do homem esmaga a ternura dos gestos e falas de imagens fantasmagóricas vindas de uma catalogação arqueológica de cenas que marcaram ou foram esquecidas dentro da história(s) do cinema.
  • As imagens de guerra emolduradas por uma tela de cinema se tornam insuficientes demais mediante o horror da guerra sem fim da sociedade no século 21. “A violência emoldurada perde o impacto”.
  • Imagens de guerra. Imagens de afeto. Imagens de resistência. Imagens de dor.
  • Ocidente e Oriente. O capitalismo ocidental sempre subjugando a cultura e a subjetividade oriental. Destruir o que se é incapaz de compreender.
  • O movimento da imagem e imagens congeladas postas a dialogar pela montagem.
  • Trens surgem constantemente na tela; navios e barcos cruzam mares e oceanos. Viagens, o descolar do homem em um mundo de fronteiras incertas. Conhecer novas paisagens, imagens que materializam novas realidades que, por sua vez, questionam certezas impostas.
  • A imagem está no núcleo do pensamento, mas suscita sempre uma exteriorização, uma saída de si.
  • Nós olhamos essas imagens, que por sua vez, também nos contemplam, nos questionam, nos desafiam.
  • Novas imagens trazem de volta citações e ideias que já foram expostas e ouvidas, mas retornam para se reafirmarem ou expandirem suas significações associadas a essas novas imagens.
  • Fragmentos de imagens, imagens manipuladas em sua velocidade, em sua definição e exposição, recortes de imagens. Fragmentos imagéticos aliados a trechos de falas interrompidas, um processo discursivo em constante construção e interrupção.
  • Imagens que se tencionam, se disseminam e declinam-se de si mesmas em formas múltiplas, se ampliam e se retraem num fluxo do vir a ser.
  • Imagem e palavra sempre ecoam no extracampo.
  • Imagens que sempre trazem um desejo. O desejo do realizador que suscita o desejo no espectador.

Livre d'Image

  • Embora carregadas de poder, imagens mostram-se frágeis, incompletas. Godard sabe das potências e insuficiências da imagem, trabalha dentro de suas fissuras, com suas imperfeições, seus limites e latências. Daí a importância do texto, da fala, dos sons e dos ruídos. Nessa fragmentação visual e sonora, JLG expões a fragilidade do mundo; uma arte que se torna imensa ao surgir das cinzas daquilo que ela destrói.
  • Pensar com as mãos. Manipular, retrabalhar e recontextualizar as imagens e agrupa-las aos sons e ao texto. Um pensamento fluído, que transcende as imagens e sons e se reconfigura dentro do espectador. Um pensar que é dividido e completado por quem vê e escuta.
  • A montagem é a batida do coração do filme, como já disse Godard É ao montar suas imagens e sons que o discurso se torna um devir contínuo. Montagem de choque. Cada imagem está em conflito com as demais imagens, conflito ora ameno, ora tenso. Concordâncias e discordância. Som e texto potencializam esses conflitos.
  • Cada imagem traz em si múltiplas interpretações e significações. O texto (a palavra) promove, afirma ou questiona essas imagens.
  • Na torrente de imagens, palavras e sons todo um universo é posto a ser pensado – fracassos, conquistas, melancolia, esperanças, inconformismo, impotência e reação. Da vida cotidiana à filosofia, da política à economia, do cinema à literatura, da pintura à fotografia, da história à arte.
  • Godard coleciona imagens como se colecionasse pedaços do mundo; do mundo material, do mundo das ideias.
  • Imagem como arte, imagem como mercadoria. Pensar e consumir. Mercado e cultura como regra, arte como exceção.
  • O cinema é uma arte habitada por fantasmas. As imagens catalogadas e manipuladas por Godard são uma materialização dessa fantasmagoria postas a serviço de um pensamento discursivo em constante elaboração.
  • Com sua manipulação da imagem, Godard não só pensa o cinema, mas o mundo. E expõe os mecanismos pelo qual o cinema pensa a si próprio e também ao mundo em que está inserido.
  • Godard trabalha tanto a materialidade e a presença da imagem, como sua ausência, sua interrupção e o que ela evoca quando se tenciona em ausência e falta. Completude e incompletude.
  • Por meio da poética da montagem, JLG promove uma organização aberta e instável de imagens que se proliferam no tempo para compor um discurso que busca fazer pensar as significações e dúvidas sobre o real apreendido e transpassado pela imanente transcendência que cada imagem evoca.
  • Godard explicita como uma imagem nunca será capaz de dar conta de toda a dor, alegria, beleza ou horror da contingência do mundo “real” que elas carregam impressas em fotogramas.
  • JLG é figura onipresente no filme. Imprime sua subjetividade no discurso das imagens que monta e manipula, se faz ouvir ao ler textos e emitir pensamentos com sua voz rouca e titubeante. ‘Imagem e Palavra’ é o próprio Godard materializando suas ideias e o seu fazer artístico em imagem e texto. O filme (assim como toda sua obra) é uma extensão do maior cineasta de todos os tempos. Suas conquistas e fracassos, desejos e ideias, o ceticismo como encara o mundo e a genialidade com que faz do cinema algo imenso a cada novo filme que realiza.Imagem e Palavra
  • O fluxo contínuo do pensamento por meio de imagens e palavras é interrompido ao término da projeção, Godard não promove um desfecho em seu filme; o que amplia a sensação de um discurso em movimento – aberto ao acaso, ao porvir – e que se prolonga após o fim do longa. Uma obra é incapaz de dar conta da complexidade do mundo físico e existencial e ‘Imagem e Palavra’ se projeta além da existência material do filme. O fluxo do pensar tende sempre a prosseguir, para além da imagem, para além do texto.
  • ‘Imagem e Palavra’ pertence ao estilo ensaístico que Godard já realizou diversas vezes, principalmente a partir de meados dos anos 1970 e que tem como seu centro paradigmático o monumental ‘História(s) do Cinema’. Mas a presença de elementos ensaísticos em seu cinema está presente em toda a sua obra, desde seus primeiros curtas e longas. Godard nunca se prende a um gênero ou estilo, seus filmes são sempre polifônicos.
  • Godard reflete em imagem e sons o mundo hoje, voltando ao passado e sendo pessimista (mas nunca em prostração) tanto em relação ao presente quanto ao futuro. Usa a história do cinema e do mundo por meio de fragmentos de filmes. Mistura suas próprias ideias e pensamentos com citações de filósofos, sociólogos, linguistas, antropólogos, escritores e artistas. Costura seu discurso em um imbricado tecido de imagens e pensamentos, unindo tudo pela montagem. JLG é, há muito tempo, um dos mais brilhantes pensadores contemporâneos. Seus filmes transcendem o cinema e são reflexões complexas sobre tudo o que nos cerca. ‘Imagem e Palavra’ é um ensaio sobre o viver, o existir, o resistir, o luto e o pensar a vida – do macro ao micro. Aos 88 anos, JLG realiza suas obras com muito mais originalidade e energia do que a imensa maioria dos realizadores. Precisamos urgentemente que a vida reserve muitos anos a mais ao velho Jean-Luc Godard e sua eterna juventude inconformista e desafiadora.

 

‘Jovens Infelizes’, de Thiago B. Mendonça

Por Fernando Oriente

‘Jovens Infelizes ou Um Homem Que Grita Não É Um Urso Que Dança’ é um filme cuja força, paradoxalmente, vem da sua incapacidade em dar conta de suas temáticas, da impotência de tonar um enunciado urgente em discurso imagético-sonoro coeso. No fato de ser refém do cinema político e marginal dos anos 60 e 70 sem conseguir emular o que esses filmes traziam de urgente para as novas demandas dos dias de hoje. É o que fica no meio do caminho entre intenção e realização que conta aqui, são o processo e o gesto que se destacam. O que retemos conosco ao final do filme é a clara sensação de que a arte não basta e talvez nunca tenha sido capaz de mudar as coisas. Em seus grandes momentos, o cinema e as outras expressões artísticas fazem pensar, apontam caminhos, são abrigos para o mal-estar do mundo. Mas para quantas pessoas? Apenas para uma elite intelectual, para os que não compactuam com o estado de coisas ou aquelas e aqueles que tem oportunidade (e sorte) de romper com o massacre do discurso oficial da indústria cultural e ver além da banalização dos produtos para consumo obediente e inofensivo do grande mercado da cultura e do entretenimento. ‘Jovens Infelizes’ não pertence a esse restrito grande momento do cinema, mas é certo que isso passava longe de ser a intenção de seus realizadores. E por isso mesmo faz pensar. Deixa claro em qual ideologia se acredita – e o que se defende e o que se combate -, incomoda com seus lugares comuns e na explicitação de sua impotência. Pelas fissuras de seus “defeitos” vemos o reflexo do caos do mundo que nos cerca, vemos a refração de nossos próprios fracassos e impossibilidades.

Jovens Infelizes

O filme tateia por clichês da ação política e do ser de esquerda, torna explícito como uma máquina capitalista sem rosto trucidou ao longo das últimas décadas os discursos revolucionários e as utopias que sonham com uma nova ordem social não capitalista. Se, como diz um dos personagens do filme, “Transformaram a utopia em uma puta velha que vende sonhos baratos” o que resta aos socialistas não é mudar o nome de sua crença, abandonar ideologias ou tentar se adaptar ao sistema com novos termos e pregar uma integração inclusiva ao neoliberalismo. O que resta fazer é abraçar essa puta velha e juntos fodermos os sonhos em um hedonismo melancólico, até nos acabarmos na “petite mort” que segue o orgasmo, no vazio destrutivo e depressivo de uma derrota já anunciada. Porque é só pensando e fazendo e, no caso de ‘Jovens Infelizes’, filmando e montando, que podemos manter a arte e a política em um constante movimento, em um vir a ser. É urgente sobreviver na impotência e no fracasso do agir, do pensar e do falar. É mais digno e menos canalha do que perecer na capitulação. Vale muito mais um filme imperfeito e démodé que abraça os lugares comuns do niilismo romantizado da negação do status quo do que uma obra moribunda que realce os valores que sobrevivem nos “corações puros”  da idealização de explorados obedientes que seguem vivendo tentando amar um amor sem tesão e espalhando afetos de propaganda de banco.

Esse primeiro longa de Thiago B. Mendonça foi realizado e se mantém preso ao calor dos protestos iniciados em 2013 pelo Movimento do Passe Livre contra o aumento das tarifas nos transportes e que foram seguidos por mais protestos, contra a repressão e a violência da polícia militar até as manifestações do “não vai ter Copa”.  O que o filme tenta trabalhar são as inquietações políticas e artísticas representadas pelos protagonistas e que antecederam e extrapolaram esse momento histórico. Esse fora de campo que hoje podemos notar (e não se inclui como extracampo imediato do longa – que foi finalizado no início de 2016) se inicia no processo de cooptação pela direita das manifestações de rua, que foram transformadas em micaretas com milhões de pessoas fantasiadas de verde amarelo, camisas da seleção da CBF, bandeiras da pátria, hino nacional e um repertório moralista anticorrupção (seletiva), contra os direitos identitários e de negação à política institucional.  Se hoje, em início de 2019 – após a eleição de uma horda de extrema direita alucinada, em meio a promessas de uma radicalização ultraliberal da economia e numa cruzada violenta contra direitos e costumes e um anti-intelectualismo demencial – ainda nos vemos sem entender de onde saiu isso tudo, é mais do que natural que ‘Jovens Infelizes’ reflita uma sensação de incapacidade em traduzir seu momento histórico, o estado de coisas a que seus personagens (e seus realizadores) estão inseridos. Por isso o filme tenta se segurar nos elementos seguros de um cinema de esquerda feito no século passado. Esse engessamento reverencial ao cinema de invenção das décadas de 1960 e 70 e o apego ao que hoje seria uma espécie de manual da vida à margem do sistema (representada pelo grupo de artistas/ativistas que conduzem o filme) impedem o filme de apontar caminhos políticos mais fortes, tanto estética quanto discursivamente, como conseguem longas recentes como ‘Sol Alegria’, de Tavinho Teixeira, ‘Era Uma Vez Brasília’, de Adirley Queirós e ‘Os Sonâmbulos’, de Tiago Mata Machado.

O filme é repleto de opções óbvias, mas não por isso menos honestas e portadoras de verdades. Personagens que são cada qual a representação de uma crença, um limite e uma ideia que formam o todo fragmentado do filme, tal qual cada fragmento/persona desse grupo de personagens é um pedaço de uma utopia incerta a que o filme se dedica com uma paixão verdadeira para em seguida se deixar morrer abraçado a esse objeto de desejo e representação. Temos a constante exaltação e múltipla representação do sexo como mecanismo de prazer subjetivante, ação de poder e contestação dogmática-moralista; performances de rua que expõe o maniqueísmo reacionário e excludente da sociedade dos “homens de bem”, o refúgio de um bar onde o samba, a bebida, as conversas e a nostalgia dos grandes revolucionários marxistas que marcaram o século 20 são constantemente enaltecidos, a participação dos personagens em manifestações e a fiel tentativa do grupo em criar arte revolucionária, seja por meio de peças de teatro, performances ou vídeos. Como tudo isso não basta e em meio a uma total falta de rumos (extremamente honesta ao momento histórico em que nos encontramos), Thiago B. Mendonça insere longos diálogos e discursos em que as personagens divagam sobre arte e ação política e termina a jornada de seus protagonistas em uma ação suicida de sequestro, encenada como uma performance político-terrorista.

'Jovens Infelizes ou Um Homem Que Grita Não É Um Urso Que Dança'

Tudo o que vemos na tela tornou-se um lugar comum em que a esquerda tenta fazer suas manifestações artístico-culturais. O excesso desse discurso claustrofóbico da falta de sentido é evidente, mas não impede que ‘Jovens Infelizes’ seja um filme necessário e tenha sua força, que apresente personagens marcantes em suas caricaturas e imperfeições e potentes cenas isoladas em meio a um desarranjo discursivo. Nem que seja para ser visto apenas como um compêndio de intenções estéticas e discursivas exauridas e da constante falta de saber o que fazer em que o país se encontra. É fácil julgar e apontar essas imperfeições, mas é notável a vontade por uma sinceridade artista e política que Mendonça e seus colaboradores (na excitação e nas limitações de um primeiro longa-metragem) têm em trabalhar esses lugares comuns, em imprimir em imagem e texto suas posições íntimas e sua visão geracional de Brasil, nem que seja para exaurir tudo e deixar claro seus esgotamentos.

Dentro dessa sinceridade almejada por Mendonça, o filme deixa explícita a distância entre a prática política de uma elite intelectual de classe média e as classes populares, a incapacidade de uma esquerda artístico-politica em dialogar com o que antes era chamado de massas e hoje adquiriu novas terminologias como multidão e precariado. Para quem que os personagens discursam? Para que público o filme é destinado? A bolha em que vivem os protagonistas é a mesma a que o filme é relegado; esse dilema, esse fardo, pesa tanto para as ações e ideias dos tipos representados na tela, quanto para o filme em si. E essa frustração transcende o que vemos em cena e nos coloca nus diante ao fato de que a arte, a política e o cinema militante fala apenas para e com uma parcela mínima da sociedade. O desafio de romper essa barreira é uma das impossibilidades mais explícitas em ‘Jovens Infelizes’.

O que o longa e seu diretor reafirmam em meio às imperfeições e fracassos dos personagens e do próprio filme é que a luta da esquerda e da arte também está no processo, no fazer, no errar e no tentar. Em ser ridicularizada, tornada fora de moda, em suma, em ir até o fim e se acabar num vazio sem esperança, mas que deixa um incômodo, uma semente, um pensamento tênue de que as ações, assim como o filme que acabamos de ver, representam algo que se aproxima do tornar em ato e fala uma ideia que não temos clareza, um sonho imperfeito de uma arte política que precisa extravasar e vir à tona, com sua impotência e seus clichês à gritar que tudo está fora do lugar.